Desarmamento: O caso da Ucrânia, as falácias dos anti-armas, e o que devemos aprender

Por Mitch Menet

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Foto: Militar ucraniano entrega fuzil a um reservista.
(Brendan Hoffman/NYT)

 

O desarmamento da população francesa foi muito prático para os alemães e para Vichy. E naquele tempo ninguém imaginava que a França pudesse ser invadida tão rapidamente. Ninguém acreditava.

 

A Ucrânia nos dá uma dessas lições como só a história pode nos dar. Ela põe nossas convicções à prova. A guerra parecia longe, e ela está nas nossas portas. Os conflitos armados pareciam se inclinar para a supertecnologia, e eis que retorna o bom e velho fuzil.

Nós pensávamos estar numa era de guerra complexa e profissional, e então nós vimos civis tomarem as armas e oferecer uma resistência inesperada ao exército russo. A Ucrânia está em vias de demonstrar que os civis armados permanecem, independentemente do que se pense, um baluarte eficaz e indispensável para um país que de fato pretende continuar independente. De fato, Zelensky decidiu, como último recurso e em caso de emergência, armar seu povo.

Os civis ucranianos armados com urgência
As distribuições de armas aos civis na Ucrânia tiveram cenas irreais. Vieram os caminhões, as caixas de armas foram jogadas no chão e mandaram cada um se servir. A União Europeia, cujas elites são notoriamente anti-armas, enviou em caráter de urgência centenas de caixas de fuzis, de munições e mesmo de metralhadoras leves em rítmo acelerado, entre elas a famosa metralhadora belga FN Evolys.

Foram enviados mísseis terra-ar portáteis tipo Stingers, e armas antitanque (lança-foguetes bem melhores que o RPG 7). Em breve, nós, da Europa Ocidental e Central, despejaremos sobre a Ucrânia um maremoto de armas que fará empalidecer os texanos. Este equipamento foi distribuído na última hora, sem organização, sem restrição de acesso para criminosos e sem verificação de idade.

E tudo isso se fez com alegria e bom humor, mas muito em breve a situação se tornou bastante perturbadora.

Essas armas não poderiam retornar para nós através do tráfico? E cair nas mãos de terroristas?

Os criminosos ucranianos não poderiam ter lucro aterrorizando o vizinho? Sobre esse último ponto eu me preocupo menos. Os criminosos preferem geralmente as vítimas desarmadas. O negócio de extorsão privada encontrou grandes obstáculos, ou então passou a sofrer uma nova concorrência que baixou muito as margens de lucro. Extorquir a velhinha que tem um AK-47 é sempre mais difícil que espoliar aquela que tem um guarda-chuva.

Os ucranianos mais comuns são agora tão armados quanto os cartéis mexicanos. Para azar dos criminosos, eles agora estão igualmente armados. Coitados, não estão acostumados. Portanto, não é tanto por lá que se terá problema com armas quanto entre nós. Por que nós, os europeus ocidentais, NÃO estamos armados.

Nós contamos apenas com a polícia para nos defender dos kalashnikovs. E, eventualmente, com dois anos de judô, entre os 12 e os 14. Boa sorte. De resto, essa proliferação não preocupa muito os tchecos ou os poloneses. Entre eles, o porte de armas é legal e fácil de obter. Entre eles, os fuzis ucranianos no mercado seriam limitados por uma queda no preço dos kalashnikovs que eles já podem ter de qualquer maneira. No final das contas, portanto, tudo isso seria de pouca importância, eles já sabem que têm o bastante com que se defenderem no quotidiano, se assim o quiserem. Em seus países a criminalidade é tão baixa quanto as armas são banais. Ou seja, a criminalidade é muito menor e as armas são muito mais banais que na França. Se fala frequentemente nos EUA a propósito das armas, mas por que ir tão longe assim, afinal de contas? Ainda falaremos sobre isso.

Ainda é preciso admitir: armar o povo no último momento na Ucrânia provocou uma distribuição caótica de armas. Pessoas incompetentes se viram na posse de fuzis que elas não sabem como usar. Elas não sabem quais são as regras de segurança que necessariamente evitam os acidentes, e provavelmente ainda menos como atirar com precisão. Imaginar o quanto as pessoas se expõem aos tiros inimigos por causa de sua falta de formação como combatentes chega a arrepiar.

Porque, como muito bem destacou um comentário de um internauta cujo nome esqueci, armar o povo com urgência desta maneira é como apertar o cinto de segurança durante um acidente. É um pouco tarde. E é vergonhoso. Um povo armado de longa data e acostumado com a utilização de armas é um povo pronto a se bater até a morte.

É um povo cujo país não interessa conquistar de um ponto de vista pecuniário, pois para tomá-lo é preciso reduzi-lo a cinzas. E enviar soldados para conquistar um campo de ruínas é sempre complicado tanto politicamente quanto economicamente. Sem contar que o massacre e a aniquilação total de um povo que está decidido a sobreviver com armas na mão são mais complicadas de sustentar que o massacre de um povo desarmado. Você não acredita em mim? Os curdos estão armados, os uigures não estão. Eu te deixo contemplar a diferença de tratamento.

E isso, todo mundo o sabe instintivamente. Os partisans armados, os povos prontos a combater, eles são um espinho nos pés dos impérios conquistadores. Não é uma garantia de sobrevivência, mas é uma verdadeira garantia de complicação para uma potência estrangeira, tanto para a conquista quanto para a ocupação. Os americanos no Afeganistão o aprenderam a suas próprias custas. Mas então, porque tanta oposição ao armamento dos franceses? Sejamos completamente transparentes: Eu sou membro ativo da ARPAC ( https://www.arpac.eu ) , a Associação para o Restabelecimento do Porte de Arma para o Cidadão. É um debate que eu tenho muito frequentemente. Os argumentos contra a ideia de um povo armado, eu os conheço como a palma da mão. Para falar a verdade, os anti-armas não me apresentam um único argumento novo já há muito tempo.

Quais são os argumentos dos anti-armas?

O medo e o desprezo
O principal, o mais importante, é sem contestação uma mistura confusa de medo e de desprezo. A nós, é explicado que uma população composta de indivíduos armados gera necessariamente uma sociedade onde uma pessoa mata o padeiro para não ter que pagar o pão. Uma sociedade onde os estacionamentos de supermercados são dignos das trincheiras da Primeira Grande Guerra, porque é bem sabido que “as pessoas se matam por uma vaga no estacionamento”.

E o que se esconde por trás dessas afirmações grotescas, desmentidas por países como a Polônia e a República Tcheca, é o desprezo. Seguir com esses argumentos é supor que muitos numerosos franceses são ao mesmo tempo estúpidos, imorais e sádicos. E que aqueles que sustentam esses argumentos não se incluem, em geral, nessa categoria.

Mas sua condescendência pelo próximo é sem limites, a tal ponto que eu me pergunto como eles podem pensar tal coisa de uma grande parte dos franceses, enquanto se declaram a favor da democracia… Considerar os outros franceses como fanáticos que só esperam por uma arma para transformar o país em matadouros dignos de reportagem da L214 (1) e ao mesmo tempo ter fé na democracia sempre me pareceu paradoxal.

Mas, de qualquer maneira, o fato é que o argumento principal dos anti-armas é uma atribuição desdenhosa de más intenções, uma mistura de desprezo e de condescendência disfarçada em bom senso popular. É também uma magnífica inversão do ônus da prova. Os anti-armas exigem dos que querem se armar que eles provem que não têm más intenções. Exigem que você prove antecipadamente sua inocência de crimes que ainda não existem. E este tipo de sofisma improvisado passa em nossos dias por um argumento de bom senso. Os processos stalinistas devem ter um belo futuro.

O exemplo americano
Quando eles mostram os primeiros argumentos ridículos, vem depois a propaganda anti-armas dos EUA.

As estatísticas americanas, truncadas, parciais, não detalhadas e por vezes exageradas são inseparáveis da argumentação hoplofóbica que deseja manter um povo desarmado. Expliquem-nos com substância que a alta criminalidade americana é por causa da proliferação de armas tanto quanto ao direito de portá-las e mantê-las. Quantas vezes tenho lido: “basta ver as estatísticas criminais americanas: 5 mortos por 100 mil habitantes, contra apenas um morto por 100 mil aqui”. Ou ainda: “30 mil mortos por armas de fogo por ano nos EUA, isso é suficiente como argumento para você?”

Não, isso não é suficiente para mim. Como Churchill, eu não tenho nenhuma confiança em estatísticas que eu mesmo não posso manipular.

Os EUA não são um país homogêneo, tanto quanto a proliferação de armas quanto a sua regulamentação. O estado de New York é mais restritivo que a França nesse domínio e tem mais crimes do que a França. New Hampshire é mais permissivo que a França e tem menos crimes que a França.

As estatísticas de outros estados confirmarão os anti-armas em suas convicções (a Louisiana, por exemplo), mas tudo dependerá da vontade de confirmar, tanto em um caso quanto em outro. Essas estatísticas são na melhor das hipóteses correlações fracas, e de forma alguma nada além de provas de casualidades. Por exemplo: dois terços dos 30 mil mortos por armas de fogo são suicídios.

Essas estatísticas não são provas convincentes. Elas são provas para os convencidos. Além do mais, a criminalidade nos EUA tem uma tendência de queda já há décadas (apesar de pico em 2020-21 com as manifestações do Black Lives Matter e o movimento defund the police), enquanto que o número de armas em circulação não cessa de aumentar já há 50 anos. Os anti-armas que nos falam dos EUA são em geral muito mal informados sobre a realidade do crime nos EUA e ainda mais mal informados sobre as próprias armas.

Por exemplo, apesar do horror trágico que eles representam, os assassinatos com muitas vítimas nas escolas são estatisticamente insignificantes. Se um ano inteiro se passasse sem um único massacre numa escola ou universidade, as estatísticas de criminalidade e de mortes por armas de fogo não teriam uma alteração significativa.

Porque o grosso das mortes são os ajustes de contas por causa do tráfico de drogas e os dramas familiares. Exatamente como acontece aqui. E o fato disso ser mais intenso por lá não pode se explicar apenas pela proliferação de armas. O mito do faroeste continua a ser um mito. Em geral, na América, você tem segurança se você não vive em um bairro violento.

“As armas não são necessárias”
Segundo os anti-armas, você não tem necessidade de uma arma.

Os ucranianos passaram a ter necessidade de armas há algumas semanas atrás, os curdos têm necessidade de armas há muito tempo, os policiais franceses têm necessidade de armas (enfim, isso depende dos policiais, muitos criticam os policiais municipais armados), os guarda-costas dos políticos têm necessidade de armas — mas você não. Isso nem sequer é questionado pelos anti-armas.

Eles dizem: as pessoas que vivem nas famosas zonas sem direito, continuamente denunciadas, e que estão submetidas a uma violência quotidiana não têm necessidade de armas. As mulheres assediadas e violadas como Anne Lorraine Schmitt (degolada numa ferrovia perto de Paris por se recusar a fazer sexo oral à força). O cartunista Charb, assassinado na redação do Charlie Hebdo, ao qual foi recusado o porte de arma e que tinha um policial perto dele, não tinha maior necessidade de uma arma, segundo o governo.

Como muitos coletivistas, os anti-armas adoram determinar o que você precisa e o que você não precisa para melhor justificar a eliminação de sua liberdade individual. Eles te desarmam, mas é para o seu bem. Eles jogam você nu diante criminosos que, por definição, riem desavergonhadamente da proibição de portar armas, mas isso é para o seu bem. Eles o fazem para evitar que você se perca em necessidades inúteis.

Você notará, então, que também não tem necessidade de álcool, de carros esportivos, de motos com maior cilindrada ou de piscinas. Mas essas coisas não são iguais às armas, mesmo se muitos morrem por causa delas a cada ano. E assim chegamos a um outro argumento.

“As armas servem para matar”
Elas são objetos inanimados, mas suas intenções são claras. Você ridicularizou a maneira como os anti-armas, desdenhosamente, supõem que os franceses são sádicos e estúpidos? Não importa, eles agora vão te mostrar as intenções das próprias armas.

Segundo eles, não há razão para autorizar um objeto que serve para matar. Exceto que isso não é verdade. As armas não servem necessariamente para matar. Concretamente, elas permitem disparar ogivas a uma grande velocidade.

Elas podem ser usadas para fazer furos ou impactos sobre alvos com muita precisão (tiro esportivo), para fazer furos em animais (caça), para ameaçar fazer furos em criminosos para os convencer a não agir quando alguém porta um quepe (patrulha de polícia), para ameaçar fazer furos em criminosos para dissuadi-los em caso de agressão (autodefesa individual e cidadã), para ameaçar fazer furos em membros de gangues estrangeiras (dissuasão popular contra os invasores), para colecionar objetos mecânicos de grande beleza, etc. Existem muitas coisas maravilhosas que se pode fazer com uma arma sem matar ninguém.

É verdade que se pode também assaltar um banco e jogar roleta russa. Admito. Mas, assim como nós falamos de DISSUASÃO nuclear e nós, franceses, não imaginamos que o objetivo de nosso arsenal é exterminar a humanidade, o objetivo da imensa maioria dos donos de armas é justamente de lutar contra a violência no nível deles. E as armas não têm objetivo nem intenção.

Povo desarmado, povo submisso
A guerra na Ucrânia parece ainda muito longe para que meu argumento de defesa nacional seja entendido pelos partisans do status quo da proibição de armas de fogo.

O porte de armas foi retirado dos franceses pelo decreto Daladier de 18 de abril de 1939 (https://www.legifrance.gouv.fr/loda/id/LEGITEXT000006071834). O tristemente célebre político signatário dos acordos de Munique desejava a paz civil. Ao aceitar entregar suas armas, os franceses passaram da condição de cidadãos à de contribuintes.

Desde então, para dizer que, ao aceitar o decreto de Daladier, os franceses tiveram a guerra e a desonra como com os acordos de Munique, é só um passo. De qualquer maneira, o registro obrigatório tanto quanto o desarmamento da população foi muito prático para os alemães e para Vichy. E naquele tempo ninguém imaginava que a França pudesse ser invadida tão rapidamente. Ninguém acreditava. Os próprios alemães admitiram que eles não imaginavam que ela seria conquistada em tão pouco tempo.

Povo desarmado, povo submisso… E de mais a mais, essa foi a razão pela qual Daladier desarmou o povo, para evitar que ele se rebelasse. Ele não escondia isso de ninguém, a criminalidade não era de jeito nenhum sua preocupação. Sob a Terceira República as mulheres eram muito frequentemente armadas com pequenas pistolas de bolsa a mão, o que fazia os assediadores pensarem duas vezes, e todo mundo achava isso muito bom.

Hoje, os políticos podem facilmente encarar os motins. Eles deixam os amotinados gastarem suas energias sobre os comerciantes e os transeuntes, o que economiza as forças da polícia para defender as instituições e seus representantes. Uma manifestação de cinco ou dez milhões de franceses não assusta realmente o governo. Como os criminosos: um grupo de cinquenta pessoas não assusta ninguém se é o caso de bons cidadãos respeitadores da lei. Por outro lado, o criminoso sabe onde encontrar uma arma e ele não tem escrúpulos quanto a andar com ela. Ele pode alegremente disparar sobre a varanda de uma lanchonete sem correr um grande risco quando o povo está desarmado.

Aí, alguém nos diz que não é bem o caso de se armar, que a criminalidade só existe por falta de recursos da política e por falta de rigor da justiça.

Quanta inocência. Até onde seria preciso aprimorar a polícia para oferecer uma segurança real e permanente mesmo nos casarões da remota Larzac? Seria desejável colocar um policial atrás de cada civil? A lista de liberdades que nós abandonamos parece jamais querer cessar de se alongar quando a contrapartida de segurança se dilui como a pele de onagro da novela homônima de Balzac.

Costuma-se exaltar os valores franceses, enquanto se esquece que o direito de andar armado era uma das primeiras reivindicações da Revolução. O povo armado individualmente deveria ser o povo que não sofreria mais sob o jugo dos aristocratas.

Quando um interlocutor termina por se convencer do bom fundamento do porte de arma, ele em geral responde assim a você: “Mas de qualquer maneira isso nunca acontecerá na França!”

Pois olhem para o Leste! Olhem para Kiev! Olhem para a história recente e antiga dos civis que se bateram por sua sobrevivência, por sua liberdade, por sua cultura. A guerra é um horror, mas é melhor um povo armado fazendo a guerra do que um povo desarmado sofrendo um genocídio. E isso vale tanto nos conflitos militares quanto no cotidiano. Os saqueadores, os soldados embrutecidos dos déspotas estrangeiros, tanto quanto os assassinos sem fé nem lei tem que se lembrar que o temor é o começo da sabedoria.

Amigos da França e de outros países, vocês que têm colocado a liberdade no topo de sua divisa, lembrem-se de seu hino nacional e de sua emoção quando ressoam esses versos inesquecíveis, quando proclamamos nosso orgulho e afrontamos a violência do mundo a partir de nosso belo Hexágono. Estufem o peito e encham a boca para declamar, com toda convicção, o primeiro sentido e a majestade de nossa imortal Marselhesa: “Aux Armes Citoyens!”

 

1 – Nota do tradutor:
A L214 é uma associação francesa de defesa dos animais que produz muitos documentários denunciando os maus-tratos que os animais sofrem.

Publicado no Contre Points.
Tradução: Flamarion Daia

 

3 Comentários
  1. Daniel Diz

    Ora, se tratam de pessoas psicopatas e imorais, que estão armadas, e que não querem que ninguém se arme, por pura crueldade. Esses homens querem apenas ter o pleno poder de matar outros homens, e não poderem ser mortos. Provavelmente, são pessoas do Estado.

  2. ronaldo fontoura da silva Diz

    nunca se ganha jogando limpo com quem só joga sujo. quando o cristão se torna comedido com seu sangue a cristandade corre perigo, porisso as coisas estão do jeito que estão. argumentos só funcionam onde a barbárie não tem vez.

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