“Todo o reino, dividido contra si mesmo, será destruído; e toda a cidade ou
família, dividida contra si mesma, não subsistirá.”
Mateus 12,25.
Nenhum grande movimento revolucionário jamais teve (nem jamais terá) por finalidade a mera substituição de um regime político qualquer, ou a simples reorganização da ordem social vigente. Tais manobras nunca foram mais que uma etapa, um meio para se estabelecer, normativa e formalmente, uma ruptura com todo o sistema moral, espiritual e intelectual com que a Tradição cristã construiu a civilização.
Isso quer dizer que o nível sociopolítico dessas revoluções é somente a superfície mais aparente e imediata — o elemento intermediário, se quisermos — de uma investida cujo verdadeiro alvo reside no plano do espírito. Não é difícil percebê-lo quando, entre outras coisas, observamos o comportamento dos seus adeptos, cuja fidelidade e sacrifícios pela “causa” não deixam dúvidas quanto ao lugar existencial que esta ocupa em suas vidas; também não escapou a muitos observadores o quão tipicamente religiosa é a estrutura pela qual essas revoluções se articulam. (1)
No entanto, justamente o que se vê “do lado de cá” é uma insistência, quase um deleite, em se discutir esses movimentos no plano teórico, em vencê-los retoricamente, mas com pouco ou nenhum comprometimento de fato existencial para com esta crise. Como explicar que o lado comunista, modernista e neopagão encontre-se mais espiritualmente investido, digamos, do que o lado que se autoproclama cristão e defensor das tradições? Como compreender que se encontre maior devoção em um jovem estudante, para com os movimentos ideológicos promovidos em sua universidade, do que no cristão brasileiro médio, para com a própria fé e religião que diz professar? O domínio cognitivo da situação é, obviamente, condição básica para enfrentá-la, mas não pode ser transformado em verborragia estéril, ou num verniz intelectualóide a conferir aparência de seriedade a uma vida prática e um mundo interior bem pouco diferentes, na realidade, daqueles dos nossos adversários. Toda intelectualidade autêntica pressupõe a implicação e aplicação de todo o ser do sujeito que busca exercê-la — algo que, nesta altura do jogo, já deveríamos saber. O problema é que após séculos de cartesianismo, kantismo e seus descendentes, entre outros perigosos simpatizantes, “vida intelectual” tornou-se, para nós, sinônimo de idealismo, de subjetivismo, de vida feita exclusivamente de pensamentos, ensimesmada em um abstrato universo de fantasias pessoais. Sob os holofotes das redes sociais, a coisa fica ainda pior: pouco a pouco, o mundo da Internet — virtual e periférico — vai crescendo, tornando-se o palco onde tudo acontece e ganhando o espaço do mundo real, enquanto este último vai sendo diminuído, cada vez mais deixado de lado e em segundo plano. Quando menos se espera, aquilo que se aparenta, aquilo que você faz para que os outros vejam, torna-se muito mais importante do que aquilo que se é — e dificilmente poderemos encontrar o que defina melhor a filosofia de René Descartes e Kant do que a confusão entre o ser e o parecer.
Não será antes de curarmos este mal que veremos raiar, ainda que palidamente, no horizonte, uma réstia de esperança na direção de um embate consciente, integral e eficaz contra tudo aquilo e todos aqueles que têm por meta, em todos os aspectos da vida humana, substituir o reinado de Deus pelo de Satanás.
1 – (Cf. meu artigo E subirei ao altar de Deus.)
Daniel Marcondes está no Substack e no Telegram.
Publicado originalmente no Cultura de Fato.
Imagem: “O Juramento do Jogo da Péla” (1791), Jacques-Louis David (1748 – 1825).