Resenha: ‘Notas Sobre a Pandemia’, de Yuval Noah Harari

Por Eduardo Cabette

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O presente trabalho tem por objetivo levar a termo uma rápida descrição geral, com comentários críticos em relação à obra de Yuval Noah Harari, intitulada “Notas Sobre a Pandemia e Breves Lições para o Mundo Pós – Coronavírus”, publicada no Brasil pela Editora Companhia das Letras. [1]

Trata-se de um livro composto de uma coletânea de entrevistas e artigos e não de uma exposição linear do tema abordado, de modo que, como não poderia deixar de ser, alguns pontos se repetem em meio aos textos, o que é natural e serve para indicar claramente os pontos de convicção forte do autor, bem como a coerência interna de seu pensamento.

Yuval Noah Harari

É de se observar que em alguns comentários sobre o livro há manifestações extremamente efusivas e exageradamente elogiosas como se a obra fosse uma espécie de texto sapiencial ou mesmo um estudo aprofundado sobre a temática da pandemia. Não o é. Tal como outras obras do autor já lidas por este comentarista é apenas um opúsculo que passa superficialmente sobre os temas, com o objetivo de ser nada mais que uma abordagem popularizada e acessível das questões desenvolvidas. [2] Neste caso, com a agravante de que não é outra coisa senão uma simples coletânea de entrevistas e artigos jornalísticos. Não espere, portanto, o leitor, um trabalho de fôlego e saiba que se assim o julgar quando da leitura, então é preciso dedicar-se ao seu próprio desenvolvimento pessoal, a fim de ser capaz de discernir entre uma obra aprofundada e um texto ou conjunto de textos comerciais e palatáveis que não superam o nível do jornalismo.

Quanto ao conteúdo, dentro dos limites acima delineados, pode-se dizer que tem pontos fortes e fracos.

Em geral é uma repetição acrítica de uma cantilena cosmopolita marcada por um projeto utópico de governança global como uma espécie de solução miraculosa imanente (em oposição ao transcendente) para todos os males da humanidade. Algo que em nada inova os delírios de “paz perpétua” de Kant, passando pelo pós – modernismo, pelos comunitarismos dos mais variados matizes, multiculturalismos relativistas radicais ou moderados, desconstrutivismos sociais, éticos, morais e institucionais e construtivismos da conformação do homem por supostos recursos de engenharia social e até mesmo de transumanismo. É claro que em seus textos (ao menos nesse livro) o autor não chega a desenvolver esses temas. O que aqui se afirma é que toda sua argumentação tem raiz nesse referencial teórico. E é muito importante saber sobre as origens não somente das ideias de outras pessoas, mas de nossas próprias. Harari é um dos produtos de um caldo cultural e acadêmico que vem sendo moldado há muito tempo e vem formando intelectuais mais ou menos homogeneizados no contexto de uma hegemonia sufocante de eventuais dissidências. [3]

A proposta de uma colaboração mundial para o enfrentamento da crise do Coronavírus e outras em escala global feita por Harari é, obviamente, indiscutível. Há um problema que afeta a todos de maneira praticamente indistinta e seu combate será indubitavelmente mais eficaz, senão unicamente eficaz mediante a colaboração de todos os implicados. A contraposição feita pelo autor entre uma postura de solidariedade e outra de oposição entre os povos interna e externamente, certamente pende inexoravelmente para a solidariedade como solução e não para o conflito.

O problema é que, como sói acontecer nessa espécie de abordagem moldada nos referenciais teóricos acima descritos, há uma tendência a olvidar ou mesmo ocultar termos importantes de uma complexa equação, deixando que o idealismo se sobreponha ao realismo necessário.  Apregoar a solidariedade, a colaboração, a tolerância, a paz, o afastamento de qualquer conflituosidade, é algo idealmente muito sedutor e até mesmo desejável. Acontece que essa condição ideal somente é possível quando há uma via de mão dupla. No caso das questões globais, a via nem mesmo é somente de mão dupla, mas de uma reciprocidade complexa que envolve muitos agentes individuais e grupais. E não é possível simplesmente fechar os olhos para a realidade de que muitos desses agentes envolvidos nada têm de compromisso com ideais como solidariedade, liberdade, respeito ao próximo, reconhecimento de Direitos Humanos Universais, respeito ao indivíduo e a culturas diversas etc.

A própria universalidade dos Direitos Humanos ou Fundamentais se esfacela quando não se é capaz de apontar para a necessária intolerância com relação a certas particularidades culturais, políticas e sociais. Não é possível pretender fingir que todas as culturas, políticas e demais demandas identitárias são igualmente válidas e respeitáveis, sem a consideração detida de sua substância ético – normativa. Defender tolerância com qualquer particularismo, ainda que em meio a uma crise global, é destruir a função crítica e propositiva dos direitos humanos. A partir do momento em que se valida moralmente qualquer particularismo ou moralidade social em nome de evitar conflitos ou respeitar suscetibilidades, já não existe base material sólida para conceitos como violência, abuso, liberdade, solidariedade etc. Ocorre aqui uma total perda de referência universal e a dominação de um relativismo tosco inservível para sustentar qualquer espécie de acordo humano. [4]

Não é admissível, neste contexto acima exposto, a reiterada manifestação de Harari quanto à suposta necessidade de abstenção em procurar culpados para a crise do Coronavírus, como se isso fosse impediente da busca de correlatas soluções. Não. Eximir culpados de sua responsabilidade, mediante uma cegueira voluntária ou condescendência, apenas significa uma tolerância com o mal e com a irresponsabilidade. Apontar os culpados e exigir as devidas reparações, ao contrário de ser um elemento de obstaculização para a superação da crise, constitui-se em um dos caminhos para uma atuação eficaz no presente e preventiva de futuras irresponsabilidades que possam gerar novas crises similares. Aliás, a crise atual é apenas mais uma das várias por que passamos devido exatamente a essa falta de responsabilização de quem de direito.

Fica muito claro pela leitura de todos os textos que compõem a obra em destaque que o autor evita, de todas as formas possíveis, indicar especificamente a responsabilidade da China em todo esse quadro caótico criado em escala global. Não há sequer uma menção ao fato concreto e comprovado de que a epidemia foi ocultada em prejuízo de uma ação preventiva que, talvez, pudesse minimizar os custos humanos e econômicos da pandemia. [5] Também não há qualquer menção, mesmo quando o autor se refere à necessária colaboração global, à imprescindível tomada de medidas sanitárias pela China para coibir práticas alimentares anti – higiênicas em sua população, as quais têm sido reiteradamente apontadas como origens de diversos surtos virais que afetam não somente aquele país, mas o mundo. [6] Permitir que a China se locuplete da crise como tem ocorrido [7] e não seja de forma alguma responsabilizada pelos prejuízos causados ao mundo, nem mesmo sequer compelida a tomar atitudes preventivas sanitárias internas, não é uma mostra de tolerância e paz, é sim um inadmissível exemplo de omissão alienada, covarde ou mesmo conivente.

A obra em análise, embora eivada por um referencial teórico altamente criticável e marcada por uma omissão e convite à omissão alheia quanto às responsabilizações necessárias, contém também passagens que expressam verdades e alertas importantes.

Afirma Harari:

Como em pandemias anteriores, também em relação à covid–19 a coisa mais importante a lembrar é que os vírus não moldam a história. Os humanos, sim. Somos muito mais poderosos do que os vírus, e cabe a nós decidir como responderemos ao desafio. O aspecto do mundo depois da covid–19 depende das decisões que tomarmos hoje.” [8]

É evidente que o destino da humanidade está nas mãos dos homens e não de um organismo biológico precário. Tem razão Harari, mas novamente é preciso ter em mente que é exatamente essa capacidade humana que enseja e legitima a necessidade de responsabilizar os culpados pela crise e chamá-los ao protagonismo da sua solução. O vírus não tem responsabilidade moral, mas os homens sim. O mundo após o covid–19 realmente depende da nossa capacidade de reação, não somente quanto à solidariedade na busca de uma cura e na recuperação das economias mundiais, mas também no que tange à responsabilização dos culpados, com finalidade preventiva. Inclusive, talvez se isso já tivesse sido feito antes, não estaríamos na condição em que estamos com o covid–19.

Outro aspecto louvável na obra de Harari é sua denúncia quanto à possibilidade de violação da privacidade e liberdade individuais, tendo como desculpa a pandemia. Assim se manifesta sobre a falsa contraposição entre privacidade e saúde:

Pedir às pessoas que escolham entre privacidade e saúde é, na verdade, a própria raiz do problema, pois se trata de um falso dilema. Podemos e devemos usufruir tanto de privacidade como de saúde. Podemos optar por proteger nossa saúde e vencer a epidemia do Coronavírus não instituindo regimes de vigilância, mas empoderando os cidadãos. [9]

E mais à frente alerta com razão:

Um dos perigos na atual epidemia é que ela justifique medidas extremas de monitoramento, especialmente monitoramento biométrico, que serão apresentadas como meio de combater esta emergência, mas que permanecerão mesmo depois que ela for vencida. Estamos falando de um sistema que monitore a população inteira o tempo todo por meio de sinais biométricos, supostamente para proteger as pessoas de epidemias futuras, mas que também pode formar a base de um regime totalitário extremo. [10]

Finalmente descreve claramente a profundidade a que pode chegar um sistema totalitário de monitoramento com as ferramentas hoje disponíveis, sob o pretexto da saúde e com sustento no medo da população:

Sim, esse é um grande risco. A epidemia do Coronavírus pode marcar um momento crítico na história do monitoramento. Primeiro, porque pode legitimar e normalizar o emprego de ferramentas de vigilância em massa em países que, até o momento, as têm rejeitado. Em segundo lugar, e isso é até mais relevante, pode implicar uma transição dramática de um monitoramento “sobre a pele” para um “sob a pele”. Antes, os governos monitoravam sobretudo suas ações no mundo – aonde você vai, quem você encontra. Agora vão ficando mais interessados no que anda se passando dentro do seu corpo. Seu quadro clínico, sua temperatura corporal, sua pressão sanguínea. Esse tipo de informação biométrica pode contar muito mais sobre você ao governo.

Imagine um Estado totalitário que daqui a dez anos exija que todo cidadão use constantemente um dispositivo biométrico. Valendo-se do nosso entendimento crescente do corpo humano e do cérebro, e usando os imensos poderes da inteligência artificial, esse regime pode ser capaz, pela primeira vez na história, de saber o que cada cidadão está sentindo a cada momento. Se você estiver escutando o discurso do Grande Líder na televisão, e os sensores biométricos captarem sinais característicos de raiva (pressão sanguínea elevada, leve aumento na temperatura corporal, crescimento na atividade das amígdalas), você correrá sérios riscos. Pode até sorrir e bater palmas mecanicamente, mas, se estiver mesmo com raiva, o regime saberá.

Os governos podem argumentar que esse cenário distópico nada tem a ver com as atuais medidas mobilizadas para combater a covid-19. Seriam apenas medidas temporárias, tomadas durante um estado de emergência. Mas medidas temporárias têm o hábito desagradável de se tornar permanentes. Depois que esta epidemia arrefecer, alguns governos poderão argumentar que precisam manter os novos sistemas de monitoramento, por temerem novos vírus, ou porque querem proteger as pessoas da gripe sazonal. Por que se limitar a vencer o Coronavírus?” [11]

Percebe-se que a moderna tecnologia enseja uma oportunidade que jamais esteve à disposição, sequer no imaginário, dos mais ferrenhos regimes totalitários. E para sua implantação, basta exatamente um bom pretexto, especialmente se sustentado no medo da doença, da morte, na insegurança em geral.

Todo totalitarismo se constrói com os ingredientes da emergência frente a uma crise real ou fictícia, o que possibilita a racionalização da concessão de poder ilimitado a alguém ou a alguma entidade. A ideia inicial é que esse poder seja atenuado com o tempo e com a superação das dificuldades. Mas, como já se tem constatado, por exemplo, no campo jurídico, o qual é instrumental ao político, a tendência é a de que se acabe descambando para a conformação de uma “eterna emergência”, consolidando-se um poder que, por sua própria natureza totalitária, não admite abrandamentos ou aberturas. [12] E essa constatação se dá com relação aos autoritarismos ou totalitarismos até hoje conhecidos e muito limitados em relação ao quadro exposto e denunciado com precisão por Harari. O que dizer de um regime baseado em um biopoder ilimitado, invasor até dos sentimentos, das impressões mais íntimas dos indivíduos?

Enfim, a obra de Harari tem suas fragilidades, tendo em vista um referencial teórico abrangente no seio do qual o autor foi formado, não conseguindo emergir totalmente de uma hegemonia cultural que o avassala a exemplo de muitos outros intelectuais contemporâneos. Não obstante, há passagens muito interessantes no trabalho, especialmente no que tange à denúncia do perigo totalitário contido na utilização da crise do Coronavírus como pretexto para implantação de monitoramentos abusivos e violadores da intimidade e da privacidade individuais.

 

Referências:
CHINA é a primeira grande economia a se recuperar da crise do Coronavírus. Disponível em https://www.dw.com/pt-br/china-%C3%A9-primeira-grande-economia-a-se-recuperar-da-crise-do-coronav%C3%ADrus/a-55324890 , acesso em 15.12.2020.

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

CIENTISTAS afirmam que sopa de morcego pode ter disseminado Coronavírus. Disponível em https://jovempan.com.br/noticias/mundo/cientistas-afirmam-sopa-de-morcego-disseminado-coronavirus.html , acesso em 15.12.2020.

DOCUMENTOS mostram que a China minimizou surto de covid-19, diz CNN. Disponível em https://exame.com/mundo/china-minimizou-surto-coronavirus-diz-cnn/ , acesso em 15.12.2020.

HARARI, Yuval Noah. Homeo Deus – Uma breve história do amanhã. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

HARARI, Yuval Noah. Notas sobre a Pandemia e Breves Lições para o Mundo Pós – Coronavírus. Trad. Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

HARARI, Yuval Noah. Uma breve história da Humanidade: Sapiens. 24ª. ed. Trad. Janaína Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2017.

LAMBEERT, Jean – Marie. Educação Unesco – A Clonagem das Mentes. Londrina: EDA, 2020.

PANDEMIA deve reforçar poder chinês na economia. Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/pandemia-deve-reforcar-poder-chines-na-economia/ , acesso em 15.12.2020.

SANTOS, André Leonardo Copetti, LUCAS, Doglas Cesar. A (In)Diferença no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

[1] HARARI, Yuval Noah. Notas sobre a Pandemia e Breves Lições para o Mundo Pós – Coronavírus. Trad. Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, “passim”.

[2] Cf. HARARI, Yuval Noah. Uma breve história da Humanidade: Sapiens. 24ª. ed. Trad. Janaína Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2017, “passim”. HARARI, Yuval Noah. Homeo Deus – Uma breve história do amanhã. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, “passim”.

[3] Para que se tenha uma noção da origem de mentes como a de Harari e de muitos outros intelectuais contemporâneos, recomenda-se a leitura atenta da obra de Lambert: LAMBEERT, Jean – Marie. Educação Unesco – A Clonagem das Mentes. Londrina: EDA, 2020, “passim”.

[4] SANTOS, André Leonardo Copetti, LUCAS, Doglas Cesar. A (In)Diferença no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 228.

[5] V.g. DOCUMENTOS mostram que a China minimizou surto de covid 19, diz CNN. Disponível em https://exame.com/mundo/china-minimizou-surto-coronavirus-diz-cnn/ , acesso em 15.12.2020.

[6] CIENTISTAS afirmam que sopa de morcego pode ter disseminado Coronavírus. Disponível em https://jovempan.com.br/noticias/mundo/cientistas-afirmam-sopa-de-morcego-disseminado-coronavirus.html , acesso em 15.12.2020.

[7] PANDEMIA deve reforçar poder chinês na economia. Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/pandemia-deve-reforcar-poder-chines-na-economia/ , acesso em 15.12.2020. CHINA é a primeira grande economia a se recuperar da crise do Coronavírus. Disponível em https://www.dw.com/pt-br/china-%C3%A9-primeira-grande-economia-a-se-recuperar-da-crise-do-coronav%C3%ADrus/a-55324890 , acesso em 15.12.2020.

[8] HARARI, Yuval Noah. Notas sobre a Pandemia, p. 8.

[9] Op. Cit., p. 36.

[10] Op. Cit., p. 67.

[11] Op. Cit., p. 77 – 78.

[12] CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, “passim”.

 

Eduardo Cabette é delegado de Polícia aposentado e professor universitário. Mestre em Direito Social, pós–graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, e membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.

 

Publicado em Estudos Nacionais.
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