O conservadorismo e o espírito criativo

Por Lynn Harold Hough. Publicado 10 Dezembro 2011. Arquivo MSM.

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Uma liberdade degenerada em anarquia deixa a mente humana confusa, sua consciência instável, e seu coração insatisfeito. E, assim sendo, não é surpreendente que o conservadorismo seja novamente ouvido entre nós.

O radical destrói o que é mal e o conservador preserva o que é bom: essa afirmação sobre a questão, ainda que útil, é uma simplificação extrema. Pois o radical destrói muito daquilo que é bom quando arranca o mal pela raiz, e o conservador freqüentemente mantém vivas coisas que não merecem imortalidade. Assim, tanto o radical quanto o conservador necessitam de criticismo corrosivo, tanto quanto apreciação. Esta distinção, entretanto, deve ser feita: o radical normalmente desenvolve uma paixão pela destruição indiscriminada; por trás do instinto conservador há a noção de valores perenes que não devem ser aniquilados. Assim sendo, é mais provável que o espírito criativo seja mantido vivo por um conservador ao invés de um radical.

Se tomarmos os papéis dos escritores criativos do mundo, não avançamos muito antes de alcançar essa verdade. Homero era o espírito criativo encarnado, e ainda os escritos que carregam seu nome se tornaram uma verdadeira Bíblia para os gregos porque, por trás de sua arte criativa, paira a noção de que há padrões pelos quais é bom que os homens vivam. A qualidade criativa é possível somente quando feita sobre um fundo de princípios permanentes lealmente mantidos, de modo que o que dá aos poemas homéricos sua imortalidade é seu retrato brilhante daquilo que merece sobreviver.

Virgílio, de modo mais deliberado, usa esse modelo para contar uma história heróica e descrever os princípios sobre os quais um império poderoso pode manter-se. Virgílio possui ternura e simpatia; mas toda a simpatia para com a rica variedade da experiência humana é subordinada àquela devoção ao dever pela qual homens e nações conquistam sua grandeza. Nesse ponto, os leitores de Virgílio encontram as tensões que dão à “Eneida” sua nobreza.

O “Paraíso Perdido” de Milton é a descrição de uma batalha entre a aventura sem lei e a obediência leal. Esse conflito é o que torna o poema magnificamente criativo. Sem o Deus que tem o direito de exigir obediência, não haveria campo para o trabalho do verdadeiro espírito criativo. Se a tragédia da ausência de leis aparece em trevoso esplendor em “Paraíso Perdido”, a glória da obediência ganha pelo ordálio domina “Paradise Regained”.

A “Divina Comédia” de Dante, com sua vasta galeria de retratos de almas, é a mais alta façanha criativa da Idade Média: cada alma mostrando as leis que confere à vida suas tensões, sua tragédia e seu esplendor.

Shakespeare alinha a vida e a história inglesas à harmonia da conquista criativa. Ele é exitoso porque sua arte é governada por aquele senso de sanções morais que dá significado à vida. Shakespeare realiza seu trabalho por insinuação; ele não precisa asseverar sanções éticas, pois são tão profundamente entremeadas aos processos da vida que elas se tornaram, em suas peças, mais substância do que tese.

Pois é somente em um mundo de sólidas sanções que a vida e a aventura da existência podem ter sentido real. Sem tais sanções, podemos ter pulsações de emoção e vibrações de impulso biológico; mas não temos significado real. Quando a vida perde suas estabilidades, a glória e a tragédia da natureza humana desaparecem. Os grandes escritores do mundo atestam que padrões permanentes são essenciais ao triunfo do espírito criativo.

Isso é verdade tanto para a imaginação quanto para a tragédia. O relacionamento da imaginação com a tradição conservadora é integral. A impudente imaginação de Aristófanes [2] foi empregada para conservar os caminhos que tornaram Atenas grandiosa. Vida destituída de tradição: é isso que Aristófanes destrói pela redução ao absurdo. Sua risada é feita para tornar seguros os velhos caminhos e ridículos os novos disparates.

Outro exemplo: Erasmo [3] foi a grande imaginação da Europa em seu tempo. Seus “Colóquios” tornaram a Europa uma grande fornalha, com Erasmo falando de seu interior. E Erasmo assumiu a tarefa de exorcizar as coisas más da existência com o riso, protegendo a reforma pela imaginação, não pela espada. Os homens confiaram em Erasmo porque ele não tentava esmagar o mundo enquanto o melhorava. Sua imaginação certeira teria sido impossível sem suas grandes lealdades. Dessas lealdades nasceu seu criticismo cristão da vida. As sanções da religião cristã deram-lhe subsídio e motivo para sua inteligência livre.

Em Erasmo, assim como em muitos espíritos da mais alta ordem, o gênio criativo existe apenas no ponto em que liberdade e estabilidade se encontram. Do temperamento conservador vem a estabilidade que sustenta os movimentos ousados de uma mente na qual a liberdade jamais sucumbe à anarquia.

Agora, parece que a lei é relacionada com ordem, não com criação; e, verdade seja dita, sistemas legais podem facilmente se degenerar em convenções rígidas. Todavia, sem leis subjacentes, não poderia haver aquela tensão necessária entre liberdade e estabilidade: aquela tensão sem a qual não haveria significado duradouro na vida ou na arte. A própria lei é a base do pensamento e da ação criativos, ainda que convenção sem vida seja um critério cediço.

Quando Aristóteles reuniu cento e cinqüenta e oito constituições gregas como a base para seu estudo de leis, ele estava se preparando para aplicar os testes da verdadeira experiência. Quando ele analisou o controle de poucos, de muitos, dos detentores de propriedade, e do tirano, ele sempre perguntou como todos os tipos de controle realmente operavam na experiência de vida da humanidade. Julgando as leis por seu poder de promover a boa vida, Aristóteles buscou conservar aqueles padrões sem os quais a vida perde significado. Não é surpreendente que Aristóteles tenha escrito uma grande obra em poesia; ou que Cícero, o mais sagaz dos romanos, fosse também o maior orador de Roma. Cícero estava em seu ápice quando refletiu sobre as fundações morais da vida privada e do Estado.

Assim, também, quando Montesquieu escreveu “O Espírito das Leis”, ele viu as sanções legais sob a luz da genuína experiência humana: em suas relações com governos nacionais, os costumes do povo, o clima, religião, comércio. A lei adquire sentido quando se relaciona com os impulsos criativos da humanidade. Em Aristóteles, Cícero e Montesquieu, o estudo humano da lei é uma fonte direta de realização criativa.

E a crítica literária, da mesma forma, torna-se criativa na proporção em que reconhece leis perenes. Longinus [4] viu o sublime como o eco de uma grande alma; ele sabia que amabilidade deve ter uma base no caráter. Sublimidade, ele escreveu, é fundada sobre o caráter humano num pico de excelência moral. Longinus, como outros grandes críticos, perseguiu o relacionamento entre alta literatura e a boa vida, assim como seu relacionamento com o princípio estético. Um trabalho de arte apresenta algo universal assim como a exibe sob uma nova luz. Em criticismo e arte, quando um princípio universal é esquecido, instaura-se o caos literário e artístico. O princípio universal – a doutrina aristotélica da catarse, por exemplo – confere permanência ao impulso criativo.

A civilização e suas façanhas são um equilíbrio entre estabilidade e liberdade: uma liberdade sob a lei, não uma liberdade da lei. Assim, conservação é a base da ousadia.

Entretanto, a confusão de nossa era levou muitos homens a idolatrar a anarquia intelectual e a licenciosidade moral. Hoje em dia, é muito fácil obter um grau considerável de proeminência intelectual fazendo apologia à rendição a falsas emoções. Essa aflição pode ser traçada ao século 19, e antes dele. Sören Kierkegaard, por exemplo, fazendo de suas próprias emoções confusas a base para sua pretensão de guiar outros homens, descartou os processos ordenados de inteligência disciplinada pelas altas pressões de sua fantasia privada. Usando o paradoxo para escapar da responsabilidade intelectual, ele encontrou o sentido da vida e da religião nas chamas de uma experiência vívida – uma experiência não regulada pelas tradições morais da humanidade. Ao seu trabalho aderiu uma megalomania sutil. E, depois das calamidades e frustrações de duas guerras, a mente da Europa, movendo-se psicopaticamente, volveu a Kierkegaard como guia e amigo. Em busca da cura, voltou-se a uma manifestação de sua própria doença.

Desse modo, os existencialistas romperam sua viva conexão com as experiências intelectuais, morais e espirituais do homem. Eles exaltaram suas próprias desilusões como uma filosofia; o brilho diamantino das sensações imediatas tomou controle do pensamento e da ação. Quando tentaram defender suas posições, os existencialistas tiveram de retomar os métodos da inteligência disciplinada que eles haviam descartado em prol de suas obsessões privadas. E quando, em alguns casos, o Cristianismo era muito forte para sua confusão privada, eles fizeram uma curiosa reconciliação: deram razões ruins para conclusões boas. Mas a maioria dos existencialistas buscou se regozijar em um universo sem norte, tendo substituído Deus por um caos moral.

O existencialismo, é verdade, foi em parte uma reação contra erros anteriores. As abstrações glorificadas do pensamento hegeliano exigiam a retomada da experiência de vida. Mas jogar fora o senso de estrutura intelectual para demolir as abstrações irreais de alguém foi um erro catastrófico. Hoje em dia, a grande lógica da compreensão e da autoridade de sanções morais permanentes deve ser restaurada para seu lugar de direito, se a vida merece ser vivida na era moderna.

Pois repudiar o passado intelectual e moral da raça deve levar – a não ser que seja restringida – à destruição de tudo que confere significado e valor à vida. Esse desastroso repúdio moderno não foi confinado meramente a círculos de intelectuais sofisticados. Ela penetrou no pensamento e na ação populares em uma infinita variedade de formas. O franco e confiável mapa da vida que – a despeito de sua ironia – foi desejado por Luciano [5] tantos séculos atrás: é precisamente disso que o homem comum precisa, mas não tem. Uma liberdade degenerada em anarquia deixa a mente humana confusa, sua consciência instável, e seu coração insatisfeito. E, assim sendo, não é surpreendente que o conservadorismo seja novamente ouvido entre nós.

O marxismo, ainda que supostamente leve o homem a uma sociedade justa e solidária, realmente é a apoteose da destruição pública e privada. A compulsão que deve ser exercida em um Estado como a Rússia Soviética é a morte do espírito criativo. Na melhor das hipóteses, a sociedade marxista é mecânica e matemática; na pior das hipóteses, monstruosamente cruel. Utopia realizada é Inferno realizado. Em tal sociedade, os regatos de energia criativa são perdidos sob areia crestada. Pois a tensão entre estabilidade e liberdade é destruída por uma nova e odiosa estabilidade total: a estabilidade fundada em falsas considerações sobre a natureza do homem.

Mesmo em formas mais brandas que o comunismo, a sociedade planejada traça o caminho para se tornar a sociedade estupidificada. Preocupado com fórmulas sociais, o homem busca em vão pela matéria da arte criativa. É verdade que alguns traços de planejamento existam em uma boa sociedade, bem como há aspectos matemáticos em toda vida satisfatória. Mas se a vida pública ou privada é realmente satisfatória, a fórmulas sociais devem ser servas, não mestres. Planejamento social não é o sentido ou o fim da vida.

O conservador inteligente não confunde amorfia com emancipação, como faz o existencialista; assim como não confunde sistema com realização, como faz o marxista. O conservador sabe que na religião, compreendida corretamente, o espírito criativo encontra um apoio de imenso valor. No mesmo momento em que a religião estabelece sua função de sustentar a alma da civilização, ela também assume o trabalho de alimentar o espírito criativo. Em religião, assim como em educação, o teste da verdade é o poder daqueles princípios permanentes que dão sentido ao pensamento criativo e à ação criativa. Conservadorismo e energia criativa são indissociáveis; eles não podem existir longe um do outro. Talvez a compreensão dessa verdade seja a necessidade mais premente de nossa desnorteada era.

Comentário do tradutor:
O espírito criativo – ou seja, a criação imaginativa, construtiva – não pode florescer sem a consciência de que existe uma ordem moral eterna à qual não se pode fugir. Ele igualmente não pode surgir na ausência de liberdade (pois não haveria espaço para que houvesse a criação), nem na ausência de estabilidade (pois o caos, a desordem última, não provê o terreno firme no qual algo possa ser criado). Um dos maiores equívocos que se pode cometer é advogar a idéia de que a estética é algo que independe da moral, que são coisas separadas. São Tomás de Aquino, em sua Summa Theologica, lembra-nos:

“A beleza acrescenta à bondade uma relação com a faculdade cognitiva, de modo que ‘bom’ significa aquilo que simplesmente agrada ao apetite, enquanto o ‘belo’ é algo agradável de se apreender.”

A recente reedição de obras de escritores beatnik, notadamente Jack Kerouac e Charles Bukowski, tem lançado uma nova onda de “literatura” destrutivamente hedonista, sobretudo junto às gerações mais jovens. A busca premente pela satisfação urgente dos anseios sensoriais mais básicos, essa entrega desregrada e intemperada aos mais baixos desejos que podem habitar a alma humana, é um reflexo indubitável da “nossa desnorteada era”. Estamos diante daquilo a que Burke se referiu há mais de duzentos anos: “nós estamos à beira da Escuridão e um empurrão nos fará cair”.

Notas do tradutor:

[1] Lynn Harold Hough (1877 – 1971) foi um reverendo metodista norte-americano, escritor, poeta e acadêmico .

[2] Aristófanes (447 a.C. – 385 a.C.) foi um dramaturgo grego, considerado o maior nome da Comédia Antiga.

[3] Erasmo de Roterdã (1466 – 1536) foi um importante teólogo, filósofo, humanista e padre católico holandês. É conhecido por sua magnum opus “Elogio da Loucura”.

[4] Longinus, crítico literário grego cuja obra abordou a estética e o sublime. Sua identidade é desconhecida, e acredita-se que viveu entre os séculos 1º e 3º da Era Cristã.

[5] Luciano de Samósata (125 – 161?), escritor satírico romano de origem turca.

Publicado na revista Modern Age (fundada por Russel Kirk), Vol. 1, N. 2 – Outono de 1957.

Tradução: Felipe Melo, editor do blog da Juventude Conservadora da UNB.

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