A censura não começou agora e a Constituição morreu antes

Por Percival Puggina

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Tomo emprestada, reverentemente, a primeira estrofe de “De frente pro crime”, de nosso grande João Bosco.

Tá lá o corpo estendido no chão
Em vez de rosto, uma foto de um gol
Em vez de reza, uma praga de alguém
E um silêncio servindo de amém

É o que me vem à mente quando penso nos desastrosos resultados da política capturada, como num sorvedouro, pelo topo do poder judiciário com bênçãos do Senado da República e da velha mídia. O que sobra para vermos e lermos são restos do banquete do leão: restos mesmo e ossos.

De onde terá vindo a ideia de que a abominável censura foi instalada anteontem? Depois dos cães farejadores do espaço digital? Dos cancelamentos de canais e páginas? Das desmonetizações? Das verdades apagadas por ordem judicial? Da sujeição e vassalagem das plataformas? Das restrições aos compartilhamentos? Da especulação normativa sobre o que podem ou não concluir os cidadãos ao serem informados sobre um elenco de verdades judicialmente reconhecidas como tais? Ou seja, sobre os perigos da operação das mentes … livres?

Por outro lado, de onde terá vindo a ideia de que a Constituição, esse corpo que está lá, estendido no chão, só anteontem foi atingida em sua essência? Depois de sucessivas interpretações antagônicas do texto constitucional? Depois das “maiorias de circunstância” (nas palavras de Joaquim Barbosa) expressarem mais desejo do que convicção? Depois de todas as invasões às competências do Poder Legislativo e do Poder Executivo? Depois de serem tais invasões fundadas em brechas interpretativas abertas a marteladas na Carta de 1988 e maculadas pela estratégia de tomar conta do pedaço para remover obstáculos ao querer da corte? Depois de se verem os ministros como “editores de um país” e “poder moderador da República”? Depois de “tirania do judiciário” se tornar locução corrente no vocabulário nacional?

Para fins político-eleitorais, a biografia de Lula foi refeita ou higienizada dentro do TSE.

*

É inútil, senhores ministros, a verdade jamais será estatizada!

 “A verdade é filha do tempo, não da autoridade.
Francis Bacon

Alguém esperava outra coisa do TSE sob a presidência do ministro Alexandre de Moraes? Por que não faria ele o que sempre faz? Depois que seus pares abriram a caixa de Pandora e vazaram as primeiras maldades e aberrações sob silêncio cúmplice da velha imprensa, só poderia avultar o poder do mais arbitrário, do mais turrão. A ele, o ministro Toffoli confiou a chefia da suprema caixa de ferramentas. Dentro dela, a Constituição Federal convive com estratégias políticas, ruidosos utensílios penais, ódios, rancores, revanches.

O que estamos assistindo nestes dias soturnos, em que supostas vítimas acusam e julgam supostos réus, e em que a indignação compõe mistura amarga com a impotência, é um derradeiro esforço para legitimar o absurdo. A aberração, no meu ponto de vista, não é Lula disputando a presidência. Aberração é o que foi feito para que ele, condenado em três instâncias, saísse da carceragem da PF de Curitiba e, passo a passo, fosse contemplado com as condições necessárias para participar do pleito.

De sua culpa, olhos postos sobre as provas, falaram nove juízes em sucessivos graus. O ministro Fux disse que foram “formais” as razões que levaram à anulação dos processos da Lava Jato. O ex-ministro Marco Aurélio afirmou que Lula não foi inocentado. A história dessa sucessão de absurdos um dia será contada nos anais da história. Será filha do tempo.

Por enquanto, tentam estatizar a verdade que, indefesa, arde nas mentes. Coagem o jornalismo ainda vivo e livre, ainda independente, a uma forçada cumplicidade silenciosa com um acervo de heresias. Não foi apenas o photoshop dos acontecimentos. Não, é algo muito pior: é exigir que todos – pelo que dizem, escrevem ou silenciam – consagrem a sucessão de excessos que cometeram!

Concedem total liberdade para quem concorda e acenam com corda para quem discorda.

Confortados com o silêncio da velha mídia, atacam a divergência. Ora, isso tem nome e sinistros paralelos na história. Com crescente frequência Stalin me vem à lembrança. Assim como o georgiano aprovava mortes por listas, assim temos, em ocorrências inéditas, listas de autores e cronistas com a intimidade devassada, defenestrados de suas atividades e fontes de manutenção, em inquéritos abertos para permanecerem abertos.

Sobre Stalin, vejam só, escreveu sua contemporânea Zinaida Gippius:

É tudo em vão: a alma está cega
Estamos destinados aos vermes e larvas
Nem mesmo restam as cinzas
Na terra da justiça russa.

Já vi essa mesma composição do STF herdada dos anos petistas deixar de lado a Constituição de 1988 e ignorar o trabalho dos constituintes originários, aposentando-os de cambulhada com suas inovações. Já vi os ministros fazerem o mesmo com jurisprudências recentes ou, mesmo, consagradas pelo tempo. Não se chame a isso dinamismo e vitalidade do Direito; é injeção de instabilidade jurídica na veia, com graves consequências políticas e administrativas. Já os vi, também, desprezar tradições da corte. Já vi ministros se altercar e se ofender mutuamente até que encontraram, a partir de 2019, objetivo comum num adversário comum. Tudo isso acompanhei com interesse de cidadão. Mas ainda não tinha visto o TSE, órgão administrativo do processo eleitoral, desprezar a Constituição e sólida jurisprudência do STF contra censura.

A maior vitória de uma nação está naquilo que ela descobre sobre si mesma.

 

Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário, escritor, colunista de dezenas de jornais e titular do site www.puggina.org, no qual os presente comentários foram publicados originalmente. Autor dos livros ‘Crônicas contra o totalitarismo’; ‘Cuba, a tragédia da utopia’; ‘Pombas e Gaviões’e ‘A Tomada do Brasil’. Integrante do grupo Pensar+.

 

2 Comentários
  1. Paulo Campos Jr Diz

    Basta olharmos para trás e veremos que a mídia já cometia este tipo de censura de tal maneira que aqueles que denunciavam o Foro de São Paulo, eram banidos das redações jornalísticas vendidas. Um grande exemplo de crítico banido foi o Olavo de Carvalho, em contrapartida, aqueles que não o denunciavam, tal como o Diogo Mainardi ou Reinaldo Azevedo (que até pincelava sobre o assunto poucas vezes) estão por aí trabalhando livremente observados sob a tutela da extrema imprensa.

  2. Luiz Augusto A G Oliveira Diz

    Censuram a VERDADE, tachando de FakNews.. de Fato, são VERDADES INCONVENIENTES ao Plano do Sistema! E o Povo Brasileiro e Latino Americano, bem como outras Nações do Mundo, foi aceitando! Como diz o Profeta, Censura não tem Ombro!

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