“Então foi revelado a Daniel, numa visão noturna, o mistério. E Daniel bendisse o Deus do céu, tomando a palavra nestes termos: ‘Que o nome de Deus seja bendito de eternidade em eternidade, pois são dele a sabedoria e a força’.”
Daniel 2,19-20.
É muito comum, quando decidimos cuidar melhor de nossa vida intelectual e passamos a nos dedicar às leituras e estudos, que nos empenhemos intensamente, às vezes até com desnecessária avidez, aos temas e autores de nosso maior interesse. Pouco, porém — e isso vale até mesmo para muitos escritores e filósofos —, é o tempo que costumamos aplicar na reflexão sobre como experienciamos o ato mesmo de conhecer e tudo o que nos implica a consciência de saber que sabemos alguma coisa.
O que talvez nos possa ajudar a travar um contato mais próximo com essas questões é pensar na vida dos profetas. Um profeta, por excelência, é o portador de uma verdade bruta, de um conhecimento que ele sabe ser absolutamente verdadeiro, pois não é fruto dos seus próprios esforços intelectuais, mas foi-lhe revelado pela fonte mesma de toda verdade (ou, se quisermos, pela Verdade ela própria). Este conhecimento, porém, é desconhecido de todos, e, na maioria das vezes, se não em sua totalidade, incompreendido, em seus níveis mais profundos, até por ele mesmo. O profeta torna-se, então, como que a intersecção exata na qual duas esferas distintas de realidade se cruzam, o ponto de convergência em que a mais rasteira humanidade se funde ao infinito. Pela posse desse conhecimento revelado, ele contempla a realidade desde um prisma indizivelmente mais amplo do que seus amigos, parentes e conterrâneos; mas isto não pode sugeri-lo qualquer assomo de arrogância, pois, ao mesmo tempo, como acabamos de dizer, ele se vê, por sua vez, em suprema inferioridade em relação à natureza da verdade que agora traz consigo, e em relação à ela própria. Esse estado de coisas não pode convidá-lo senão a humilhar-se diante do real.
Mas Deus nada revela aos homens apenas para satisfazê-los em sua vã curiosidade sobre este ou aquele assunto, mas sempre em vista de sua salvação. Juntamente com a revelação, o profeta é incumbido da missão de, através dela, exortar aos demais, e disso decorre uma série de efeitos digamos externos, mais propriamente sociológicos: a rejeição à mensagem, acusações de charlatanismo e todo tipo de desconfiança, questionamentos sobre as condições de sua saúde mental, o ódio à verdade revelada e, por consequência, ao seu mensageiro, a inveja diante do que seria uma “preferência imerecida”, e assim por diante. O quão dura não há de ser a experiência de precisar navegar em meio a tudo isso, resignada e humildemente, ao mesmo tempo em que — e justamente porque — se sabe que o que se sabe é verdadeiro, mas também não sendo capaz de explicá-lo suficientemente, nem de responder a todas as perguntas que lhe são feitas. O profeta caminha entre a multidão como quem andasse em campo aberto com uma vela em mãos, cuidando para que sua chama não se extinga.
Mas se essas experiências são, por um lado, singularíssimas e demasiado extremas, dado o caráter extraordinário da situação, estão, por outro, muito mais próximas de nós do que poderia nos parecer em um primeiro momento. Isso porque a distância entre aquilo que um profeta conhece e o que nós conhecemos é apenas, digamos, “quantitativa” — o profeta, não somente no conteúdo, mas no modo como o recebe, é alvejado por um jorro luminoso de verdade que, não fosse precisamente mensurado por Deus, viria a cegá-lo; qualitativamente, porém, o profeta conhece essa verdade que lhe é revelada através das mesmíssimas potências intelectivas de qualquer outro ser humano. O ato de conhecer do profeta e o nosso são exatamente os mesmos; o que ele conhece é inabarcavelmente mais profundo e puro, mas como conhece, conhece como nós.
É por isso que quando começamos a estudar por pouco que seja, quando passamos a nos dedicar com um mínimo de seriedade a uma vida intelectual e espiritual mais rica e coerente, não costuma tardar até que nos vejamos em situações mais ou menos análogas àquelas enfrentadas pelo profeta, principalmente no interior de uma sociedade que insiste em nutrir tamanho ódio ao conhecimento e tamanha aversão a tudo que não tenha ao menos um quê de lúdico, de circense, como é o caso da sociedade brasileira.
Precisamos, também nós, caminhar sem permitir que os ventos do mundo e das nossas misérias acabem por subjugar-nos a chama, o que, tal como no caso do profeta, não poderá ser feito sem que peçamos instantemente, humilhados diante de um vislumbre de eternidade que se estende sobre nós, o auxílio de Deus.
Publicado originalmente no Cultura de Fato.
Daniel Marcondes, escritor e professor, também está no YouTube e no Telegram.
Imagem: “Profeta Isaías”, 1707, por Antonio Balestra (1666 – 1740).