Terror e fome na Ucrânia

Thomas E. Woods Jr. - Arquivo MSM

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Thomas E. Woods Jr.

Arquivo MSM
Publicado em 11 de maio de 2004

Resumo: O genocídio cometido pelo regime comunista soviético na Ucrânia foi uma das maiores tragédias do século XX, e permanece ignorado.

© 2004 MidiaSemMascara.org

Como acontece com todos os regimes totalitários, também o da Rússia bolchevique via com apreensão qualquer expressão de sentimento nacionalista que surgisse em meio aos povos sob seu jugo. A propaganda bolchevique sobre os direitos das várias nacionalidades dentro da órbita da Rússia mascarava o medo do regime diante do poder do nacionalismo.

Em 1918, o líder russo Vladimir Ilich Lenin tentou impor um governo soviético ao povo da Ucrânia, país que havia declarado sua independência apenas um mês antes. Durante o breve período em que durou, este governo tentou acabar com as instituições educacionais e sociais da Ucrânia. Desta época, há até relatos sobre uma precursora da KGB, a Cheka (Comissão Extraordinária Para a Luta Contra-Revolucionária), cujos agentes matavam pessoas pelo crime de falarem ucraniano na rua.

No final daquele mesmo ano, os ucranianos acabaram re-estabelecendo a república. A vitória, no entanto, durou pouco. É certo que, de uma forma ou de outra, Lenin acabaria por querer incorporar a Ucrânia à União Soviética. Garantir o controle daquele território, no entanto, era particularmente importante para Lenin devido aos seus grandes recursos naturais. A Ucrânia possui um dos solos mais férteis da Europa, o que lhe valeu o apelido de “cesta de pães da Europa”.

No início de 1919, um novo governo soviético já tinha sido estabelecido na Ucrânia, mas novamente falhou. Esses acontecimentos coincidiram com a Guerra Civil Russa e o apoio de facções rivais contribuiu para que a Ucrânia, pela segunda vez, recuperasse sua independência.

O regime de Lenin aprendeu uma valiosa lição com esses dois fracassos. Segundo Robert Conquest, “chegou-se à conclusão de que a nacionalidade e a língua ucranianas eram dois fatores de suma importância; e um regime que ignorasse isso ostensivamente estava fadado a ser visto pela população como uma mera imposição”. Quando os soviéticos conquistaram o controle da Ucrânia pela terceira e derradeira vez em 1920, perceberam que, a menos que fizessem grandes concessões quanto à autonomia cultural ucraniana, seria impossível evitar as constantes insurreições. Durante uma década, então, os ucranianos – com sua cultura e sua língua – foram deixados em paz. Entre os comunistas russos, entretanto, sempre existiu aquela facção que via no nacionalismo ucraniano uma fonte intolerável de desunião dentro das fileiras soviéticas e que achava que, mais cedo ou mais tarde, a situação teria de ser enfrentada de algum modo.

Oito anos mais tarde, em 1928, quando Joseph Stalin já estava no poder, a União Soviética optou por uma política de “requisição de grãos” em grande escala (a expressão era uma maneira eufemística de dizer que se planejava tomar a produção dos camponeses à força). Devido à falta de informação e à sua característica ignorância com relação aos princípios que regem o funcionamento do mercado, as lideranças soviéticas estavam convencidas de que o país estava no meio de uma crise de grãos. Pode-se dizer, grosso modo, que as requisições funcionaram, na medida em que garantiram ao governo os grãos supostamente necessários. Mas, elas abalaram definitivamente a confiança dos camponeses no regime. A partir de então, o fantasma da possível volta das requisições – uma prática que havia sido encarada como uma versão aberrante dos confiscos de grãos empreendidos por Lenin na época da Guerra Civil Russa – assombraria para sempre os camponeses. Naturalmente, eles se sentiam agora muito menos incentivados a produzir, pois sabiam muito bem que os frutos de seu árduo trabalho podiam ser facilmente confiscados por um regime sem lei, o mesmo que confiscara, em 1928, os próprios grãos cuja liberdade de produção e venda havia prometido aos camponeses.

Uma vez que a abolição da propriedade privada constituía um aspecto importante do programa marxista, era apenas uma questão de tempo até que o regime decidisse embarcar em uma jornada de coletivização das fazendas. Os camponeses seriam então amontoados em enormes fazendas estatais, as quais não apenas satisfariam as exigências da ideologia marxista, como também resolveriam o problema prático do abastecimento de grãos nas cidades, onde o proletariado soviético trabalhava arduamente na realização de uma rápida industrialização. Fazendas estatais significavam grãos estatais.

Alguns especialistas tentaram avisar Stalin de que suas metas, por demais ambiciosas tanto para a indústria como para a agricultura, eram ridiculamente incompatíveis com a realidade. Um de seus economistas então simplesmente explicou: “Nossa tarefa não é estudar economia, mas mudar a economia. Não estamos submetidos a nenhuma lei. Não há fortalezas contra as quais os bolcheviques não possam investir”.

Juntamente com a política de coletivização, Stalin conduziu uma campanha brutal contra os latifundiários, ou kulaks, cuja resitência à coletivização já era esperada. A idéia de que apenas aqueles indivíduos definidos como kulaks se oporiam à coletivização era uma fantasia de Stalin; toda a população do campo estava unida nessa oposição. Até o Pravda divulgou um incidente envolvendo mulheres ucranianas que tentaram bloquear a passagem de tratores que chegavam ao campo para serem usados em fazendas coletivizadas. As mulheres gritavam: “O governo soviético está trazendo de volta a escravidão!”

Stalin constantemente falava de sua política de “extinção dos kulaks como classe social” Eles eram os inimigos públicos do campo. De fato, com o passar do tempo, a definição de kulak foi-se tornando tão elástica que o conceito – assim como as terríveis punições impostas àqueles que nele se encaixavam – podia ser aplicado a praticamente qualquer camponês.

Segundo um livro oficial de história do Partido Comunista, “os camponeses expulsavam os kulaks de sua terra, ‘deskulakizavam-nos’, levavam seus animais de criação e os encaminhavam às autoridades soviéticas para que fossem presos e deportados”. Como descrição do terror empreendido contra os kulaks, esse relato não serve nem como piada de mau gosto, uma vez que era o governo que dirigia as perseguições. Ao fim, de acordo com uma testemunha ocular, para que um homem estivesse condenado, bastava que “tivesse contratado pessoas para trabalhar para ele como assalariadas ou [que tivesse] sido dono de três ou quatro vacas”.

Em 1929, cerca de 20 milhões de propriedades familiares podiam ser encontradas nas áreas rurais da Rússia. Cinco anos depois, todas elas estavam concentradas em 240 mil fazendas coletivas. Ao longo da história da União Soviética, contudo, não são poucos os casos em que se permitiu a certas pessoas possuirem alguns acres de terra para uso particular. E quando Mikhail Gorbachev subiu ao poder em 1985, as propriedades particulares, que totalizavam 2% das terras soviéticas, eram responsáveis por 30% da produção de grãos no país – uma verdadeira humilhação para aqueles que vociferaram que a agricultura socialista tornar-se-ia mais eficiente que a capitalista, ou que poderiam mudar a natureza humana ou reescrever as leis da economia.

Na mesma época em que deu início à coletivização forçada, Stalin também ressuscitou a campanha anti-nacionalista contra a cultura ucraniana, suspensa desde 1920. Foi na Ucrânia que a política de coletivização de Stalin encontrou a mais forte resistência, muito embora o processo, mesmo lá, já estivesse praticamente concluído em 1932. Não obstante, Stalin considerava a persistência do sentimento nacionalista ucraniano uma ameaça permanente ao regime soviético, o que o levou à decisão de resolver, de uma vez por todas, o que via como o problema da lealdade na Ucrânia.

O primeiro estágio desta política de Stalin na Ucrânia dirigiu-se aos intelectuais e às pessoas ligadas à cultura, milhares das quais foram presas e receberam simulacros de julgamento. Cumprido o objetivo de privar o povo ucraniano daqueles que seriam os líderes naturais de futuros movimentos de resistência, Stalin se voltou para o próprio campesinato, que era o verdadeiro portador das tradições ucranianas.

Apesar do adiantado estágio em que se encontrava o processo de coletivização na Ucrânia, Stalin declarou que a guerra contra os perversos kulaks ainda não estava acabada – eles tinham sido “derrotados, mas não exterminados”. Para supostamente combater os kulaks, Stalin agora começaria uma guerra contra os poucos fazendeiros independentes que ainda existiam e dentro das próprias fazendas coletivas. A esta altura, qualquer indivíduo que, por qualquer motivo, pudesse ser classificado como kulak já tinha há muito sido afugentado, assassinado ou enviado a campos de concentração. A estratégia da campanha seria, portanto, aterrorizar os camponeses comuns. Eles deveriam ser destruídos, física e espiritualmente, e sua identidade como povo lhes seria sugada à força.

Stalin começou a estabelecer metas de produção de grãos impossíveis de serem cumpridas sem que os próprios camponeses morressem de fome. O não-cumprimento dessas metas era considerado sabotagem deliberada e, por fim, Stalin acabou por autorizar o confisco da produção para que se cumprissem as metas. Um historiador conta a história de uma mulher que foi presa com um de seus filhos por ter tentado colher um pouco de seu próprio trigo. Após ter conseguido fugir da prisão, a mulher juntou umas coisas e fugiu para a floresta, onde viveu com seu filho por um mês e meio. As pessoas eram condenadas a dez anos de prisão por colherem batatas ou até por arrancarem espigas de milho nos pequenos sítios que o governo lhes permitia possuir.

Os militantes comunistas – alegando que os sabotadores estavam por toda parte, negando-se a fornecer alimentos às cidades e desafiando as ordens de Stalin – faziam buscas em propriedades privadas. Os mais gentis deixavam uma quantidade módica de alimento para as famílias e os mais cruéis levavam tudo.

O resultado era bastante previsível: as pessoas começaram a morrer de fome, em contingentes cada vez maiores, ao ponto de que o camponês que não aparentasse estar morrendo de fome era considerado suspeito pelos soviéticos. Conta um historiador que “um militante, ao fazer uma busca na casa de um camponês cujo corpo não tinha ficado inchado, finalmente encontrou um saco que continha farinha misturada com cascas esfareladas e folhas, jogando-o então no açude do vilarejo”.

Conquest cita o depoimento de um militante:

Eu ouvia as crianças… engasgando, tossindo aos gritos. Era aterrorizante ver e ouvir tudo isso. Pior ainda era tomar parte nisso… Eu explicava a mim mesmo e me persuadia de que não devia me deixar enfraquecer e me entregar à compaixão… Estávamos cumprindo nosso dever revolucionário. Nós estávamos recolhendo grãos para a pátria socialista…

Nossa grande meta era o triunfo universal do Comunismo e, para atingir essa meta, tudo era permitido – mentir, enganar, roubar, matar milhares e até milhões de pessoas…

Era assim que eu raciocinava, eu e todos os meus colegas, mesmo depois… de descobrir o que realmente significava a ‘coletivização total’ – como eles ‘kulakizavam’ e ‘deskulakizavam’, como eles despiam impiedosamente os camponeses durante o inverno de 1932-33. Eu mesmo participei, rastreando o campo, procurando por grãos escondidos… Junto com os outros, eu esvaziei armazéns de camponeses idosos, tampando meus ouvidos ao choro das crianças e às lamentações das mães, pois eu estava convencido de que estava realizando a grande e inevitável transformação do campo; de que no futuro as pessoas que viviam ali estariam em melhores condições por causa disso…

Naquela terrível primavera de 1933, eu vi pessoas morrendo de fome. Eu vi mulheres e crianças de barriga inchada, ficando azuis, respirando ainda, mas com os olhos vagos, sem vida… Eu [não] perdi minha fé. Como sempre, eu acreditava porque queria acreditar.”

Em 1933, Stalin emitiu uma nova ordem de busca, cuja execução começou em março daquele ano em uma Ucrânia devastada pela fome. Pouparei o leitor de descrições gráficas do que aconteceu então. Direi apenas que havia cadáveres por toda parte e o fedor da morte era tão intenso que deixava o ar pesado. Vários casos de loucura e até canibalismo foram documentados. Cada família de camponeses reagia de modo diferente à lenta morte por inanição:

Dentro de uma choupana qualquer, a situação era de guerra. Todos se vigiavam atentamente e brigavam por migalhas de pão; a esposa havia-se tornado inimiga do marido e vice-versa; a mãe odiava os filhos. Em outra choupana, o amor era sagrado. Eu conheci uma mulher que tinha quatro filhos. Ela contava lendas e contos de fadas às crianças, para que elas esquecessem que estavam famintas. Mal conseguia mover sua língua, mas encontrava forças para tomar seus filhos nos braços, mesmo que mal conseguisse levantá-los quando não havia ninguém entre eles. O amor sobrevivia dentro dela. As pessoas então começaram a perceber que onde havia ódio os cadáveres se multiplicavam mais rapidamente. Mesmo assim, o amor não salvou ninguém da morte. Todo o vilarejo pereceu. Toda a vida se extinguiu.”

O número de ucranianos mortos na fome de 1932-33 foi de aproximadamente 5 milhões. Mas, segundo Conquest, se forem computadas outras catástrofes ocorridas entre 1930 e 1937, incluindo-se as inumeráveis deportações de supostos “kulaks”, atinge-se a estarrecedora cifra de 14,5 milhões. Mesmo assim, seria um pequeno milagre se 1% dos alunos que cursam a minha disciplina a cada ano tivesse sequer ouvido falar desses acontecimentos.

Já me referi várias vezes aqui ao historiador Robert Conquest, um excelente estudioso da história da União Soviética, e gostaria de pedir encarecidamente a todos que se interessem por esses acontecimentos que leiam seu extraordinário livro The Harvest of Sorrow (A Colheita Maldita). Parece um romance, mas a história que ele conta é bem real.

Depois de todas as acusações contra “A Paixão de Cristo”, Peggy Noonan perguntou a Mel Gibson, sem cerimônia: “O Holocausto aconteceu, certo?”

Gibson, estarrecido, surpreso com o fato de que alguém precisasse recorrer a ele para confirmar a veracidade de fatos históricos, respondeu que sim, claro que aconteceu. Acrescentou ainda que o século XX está repleto de atrocidades e nenhuma delas deveria ser esquecida. Mencionou então a tragédia na Ucrânia, onde o regime de Joseph Stalin matou de fome 7 milhões de pessoas, deliberadamente.

Obviamente, a resposta serviu apenas para reafirmar a perversidade de Gibson na cabeça daqueles que já o desprezavam. Como, por exemplo, Abe Foxman, presidente da Anti-Defamation League (Liga Anti-Difamação), que disse ter ficado chocado e desgostoso com as observações do diretor. Segundo Foxman, “ele não entende nem de longe a diferença entre se morrer de fome e pessoas sendo cremadas pelo simples fato de serem o que são“. Então foi isso que aconteceu na Ucrânia – as pessoas simplesmente “morreram de fome”.

 

(Publicado originalmente por lewrockwell.com)

Tradução: Evandro Ferreira – evandroferreira.outonos.com.

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