Populismo: um brado de liberdade – Parte 4

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Por Roger Kimball. Publicado em 1 de janeiro de 2018.
Arquivo MSM.

Parte 4

Quando Donald Trump assumiu a presidência, seu estrategista-chefe, Steve Bannon, disse que seu objetivo era “desconstruir o Estado administrativo.” Este termo “Estado administrativo” – também chamado de “Estado regulatório” ou “Estado profundo” – tem, ultimamente, emergido no debate público. Com efeito, no livro A Ameaça Administrativa, o jurista e pesquisador Philip Hamburger o descreve como “um Estado dentro do Estado,” uma espécie de estrutura legal e política paralela repleta de burocratas não-eleitos. Diz ele que esta amorfa congregação de agências e regulações tornou-se “a realidade dominante do governo norte-americano,” intrometendo-se em todos os aspectos da vida econômica e social.

Para entender o que ele diz, pense o seguinte: O artigo primeiro da Constituição americana atribui todo o poder legislativo ao Congresso, assim como o artigo terceiro imbui toda a autoridade judicial ao Tribunal. Pois bem, segundo Hamburger, o Estado administrativo é um mecanismo para contornar ambos. E, por agir assim, opera fora da Constituição.

Quando a Constituição aloca todos os poderes legislativos no Congresso, ela dá ao Congresso não apenas o poder de fazer leis mas também o poder de desfazê-las. E, desse modo, ela impede o Poder Executivo de suspender ou não cumprir a lei. Quando a Constituição, ademais, aloca o poder judicial nos tribunais e assegura o devido processo legal, ele retira do Poder Executivo o direito de dizer aos tribunais para não aplicarem as leis, e também impede os tribunais de abandonar seus próprios entendimentos sobre o que as leis impõem.

Ao sujeitar os cidadãos não a estatutos promulgados pelo Congresso mas a decretos da burocracia gerencial, o Estado administrativo está “se evadindo do controle legal sobre o governo, bem como das garantias constitucionais e dos direitos processuais.” Assim, Hamburger conclui, a atividade usurpadora do Estado administrativo representa “a ameaça preeminente às liberdades civis nacionais.”

Ele faz uma analogia entre o comportamento do Estado administrativo e o de déspotas como James I, Charles I e James II. Estes reis ingleses, ao invés de persuadirem o parlamento a revogar ou revisar um estatuto, simplesmente afastavam sua obrigatoriedade decretando que alguns ou até mesmo todos os seus súditos não estavam sujeitos às determinações legais. Seu poder era absoluto não apenas no sentido de que era plenamente ilimitado mas também no de que ele era independente e estava acima da lei. Serve como paralelo, e os estudantes de latim certamente vão recordar, do modo ablativo absoluto, uma construção em que uma frase que serve de ablativo é absoluta, “desprendida” ou independente da oração principal da frase. Não obstante, Hamburger demonstra como o crescimento do Estado administrativo representa um “ressurgimento do poder absoluto” extralegal, o qual ameaça transformar os direitos e garantias constitucionais em meras “opções” que o governo concede ou retira a seu bel-prazer. “Esta esquiva”, ele aponta, “por si só altera a própria natureza dos direitos processuais. Tais direitos tradicionalmente foram garantias contra o governo. Agora eles são apenas uma das opções do governo no exercício de seu poder, pois, embora o governo deva respeitar estes direitos quando litiga contra os cidadãos americanos nos tribunais, ele tem a liberdade de escapar deles escolhendo o caminho administrativo.”

Da mesma forma que os reis britânicos do século XVII evitavam o parlamento por meio de recursos como a Camera stellata e o exercício de prerrogativas ou perdões reais – o que John Adams acusou de ser “distintivos de opressão chamados de prerrogativas” – também o Estado administrativo de hoje opera em violação da Constituição e além da autoridade do Congresso. Barack Obama, por exemplo, decretou que algumas disposições politicamente impalatáveis do Affordable Care Act (Obamacare) não fossem aplicadas, e pronto, elas não o foram, mesmo sendo lei nacional. Ele também instruiu seu departamento de justiça a intervir com o fim de impedir o Arizona e outros estados de aplicarem certos aspectos da lei de imigração. Ele até mesmo forçou instituições públicas a acomodar auto-declaradas pessoas transgêneras nos banheiros de sua escolha; ele foi conivente com processos que puniram padarias, hospitais católicos e lojas de modelagem que escolheram não se juntar à campanha politicamente correta pelo sexualmente exótico que estivesse em voga. Ou seja, a Constituição pode até ter imbuído todo o poder legislativo no Congresso e confiado todo o poder judicial aos tribunais, mas o Estado administrativo passa ao largo dessas obrigações erigindo uma estrutura burocrática paralela de controle e coação.

“Os cidadão americanos do século XVIII”, destaca Hamburger, “presumiram que uma regra poderia ter a obrigação de uma lei apenas se ela viesse da legislatura constitucionalmente estabelecida e votada pelo povo.” No entanto, hoje em dia, os cidadãos americanos têm suas vidas dirigidas por uma selva de agências bem distantes das legislaturas e povoadas de burocratas que fazem e aplicam uma vasta rede de regras que governam praticamente todos os aspectos de nossas vidas.

Um dos aspectos mais perturbadores da análise feita por Hamburger é a conexão histórica que ele expõe entre a expansão de direitos civis e políticos no início do século XX e o crescimento do poder administrativo, ou seja, extra-legal do Estado. Para as pessoas no comando desse poder, igualdade de direito de voto até era algo aceitável de se distribuir a todos. Eles até aceitaram conviver com isso. Agora, a tendência dos novos grupos emancipados – os “fanáticos raivosos” e “deploráveis” de antigamente – de rejeitar iniciativas progressistas é algo totalmente diferente. Como dizia, tristemente, Woodrow Wilson, o grosso da humanidade é rigidamente não-filosófica, e hoje em dia o grosso da humanidade vota.” O que fazer?

A solução encontrada pela “classe inteligente” foi transferir o poder real para fora das legislaturas eleitas e para as mãos das pessoas certas, pessoas iluminadas, pessoas progressistas, ou seja, pessoas como Woodrow Wilson. Fazendo isso, Wilson acolheu o advento do poder administrativo como o contrapeso à democratização “prejudicial”. E foi assim, aponta Hamburger, que nós nos deparamos com a transferência do poder legislativo para a “classe inteligente”, a elite gerencial que James Burnham dissecou.

Um olhar mais atento para esta soi disant “classe inteligente,” contudo, nos mostra que o que ela sabe fazer de melhor mesmo é preservar e expandir seus próprios privilégios. Suas atividades até são envoltas na retórica do fazer-o-bem para servir ao público, cuidar do “meio ambiente,” ajudar os menos favorecidos, etc., mas é na consolidação de seu próprio poder que ela se supera em excelência.

No livro Pensamentos sobre a causa dos presentes descontentamentos (1770), Edmund Burke criticou a Corte de George III por contornar o Parlamento e estabelecer em sigilo o que equivaleria a um novo regime de regalias reais e de tráfico de influência. Ela não foi tão flagrante quanto as cortes presunçosas de James I ou Charles I. Isso porque George e seus cortesãos mantiveram a aparência de supremacia do Parlamento. Um olhar mais atento, contudo, percebia que o sistema estava corrompido. Com efeito, “Logo foi descoberto,” – Burke escreveu com astuta simplificação -, “que as formas de um governo livre, e os fins de um governo arbitrário, eram coisas não de todo incompatíveis entre si.” O descobrimento deste fato está por trás do crescimento do Estado administrativo. Sob o manto das instituições democráticas, suas atividades essencialmente não-democráticas perseguem uma agenda expansionista que ameaça a liberdade na forma mais acachapante, circundando a lei.

Ao mesmo tempo, contudo, um reconhecimento crescente dos objetivos totalitários do Estado administrativo tem alimentado o que muitos estão chamando de revolta populista nos EUA e na Europa. “Populista” é uma das definições para o fenômeno. A reafirmação da soberania, amparada por uma paixão pela liberdade, é outra, possivelmente mais acurada.

 

Leia a primeira parte clicando aqui , a segunda aqui, e a terceira, neste link.

 

Roger Kimball, crítico cultural norte-americano, é o editor da revista The New Criterion e autor de vário livros, dentre os quais, “Radicais nas Universidades – Como a Política Corrompeu o Ensino Superior nos Estados Unidos da América” e “Experimentos Contra a Realidade – O Destino da Cultura na Pós-Modernidade”.

Tradução: Filipe Catapan

 

 

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