Populismo: um brado de liberdade – Parte 3

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Por Roger Kimball. Publicado em 16 de dezembro de 2017.
Arquivo MSM.

 

Parte 3

A questão da soberania também está por trás do debate sobre imigração: com efeito, há algum assunto que seja mais central para a questão sobre “Quem governa?” do que quem pode decidir as fronteiras de uma nação ou como um país define sua primeira pessoa do plural: o “Nós” que faz de nós quem somos enquanto um povo?

Durante toda sua campanha, Donald Trump prometeu que faria cumprir as leis de imigração norte-americanas, que daria um fim às auto-proclamadas “cidades-santuário”, as quais propagandeavam-se a si mesmas como abrigos seguros para imigrantes ilegais (embora é claro que estes não fossem por elas chamados de “imigrantes ilegais”), e que tornaria mais aguçados os procedimentos de veto para pessoas que pretendessem imigrar para os EUA de países reconhecidos como patrocinadores de terrorismo.

O presidente muitas vezes exagerou e outras tantas se atrapalhou com o assunto. Precisão semântica não é uma especialidade trumpiana. Efetividade política, contudo, parecer ser. Por trás da “Tempestade e ímpeto” que recepcionou as invectivas de Trump sobre imigração, podemos vislumbrar dois conceitos bem diferentes de Estado-nação e ordem mundial. Um deles vê o mundo como uma coleção de países soberanos independentes que, embora interajam uns com os outros, consideram o cuidado, a segurança e a prosperidade de seus próprios cidadãos como sua primeira obrigação. Essa é a visão tradicional do Estado-nação. É também a visão de Donald Trump. É o que fundamenta seu discurso de favorecer “Primeiro a América,” um conceito que, exceto na mídia anti-Trump, não tem nada a ver com o movimento isolacionista dos anos 1930, de Charles Lindbergh, e tudo a ver com a promoção de um saudável senso de identidade e propósito nacional.

A outra visão encara o Estado-nação com suspeita, vendo-o como uma forma de organização política e social atávica. O Estado-nação pode até ser uma necessidade prática, mas, segundo essa visão, é uma necessidade lastimável na medida em que ela retarda a emancipação da humanidade de seus paroquiais laços de fidelidade local e territorial. Idealmente, para esta corrente, nós seríamos todos cidadãos do mundo, não de países em particular, e nossa obrigação fundamental seria com toda a humanidade.

Essa é a visão progressista. Ela tem muitos progenitores e muitos antecedentes. Nenhum deles, contudo, é mais influente que Immanuel Kant e seu ensaio “A paz perpétua: um esboço filosófico”, publicado em 1795, quando Kant contava com 71 anos de idade. O foco do ensaio é perscrutar como a paz perpétua entre as nações pode ser obtida. A condição natural da humanidade, Kant reconhece, é a guerra. No entanto, com o advento dos “conceitos iluministas sobre a política e o Estado,” a humanidade, ele dá a entender, seria capaz de transcender aquele desafortunado hábito de guerrear e vir a viver em uma harmonia perpétua (ewigen, isto é, “eterna”).

Kant enumera várias condições para o estabelecimento inicial da paz – a eventual abolição dos exércitos regulares, por exemplo – e algumas condições para sua perpetuação. Destas, a expansão da “hospitalidade universal” pelas nações foi algo que chamou minha atenção. Notadamente, a menção à “cidadania universal.” “A ideia de … cidadania universal,” diz Kant no final do ensaio, “não é uma noção tão extravagante ou exagerada. É um suplemento do código não escrito das leis civis e internacionais, indispensável para a manutenção dos direitos humanos públicos e, por conta disso, também da paz perpétua.”

Kant faz diversas considerações ao longo de sua exposição que serão balsâmicas para os corações progressistas. Ele é contra “a acumulação de riquezas,” por exemplo, porque a fartura é “um obstáculo para a paz perpétua.” Pelo mesmo motivo, ele acredita que proibir o sistema de crédito internacional que o império britânico usava “deveria ser um artigo preliminar para a paz perpétua.” O crédito pode ser empregado para aumentar a prosperidade, logo ele é suspeito. Kant também diz que todos os Estados devem ser “republicanos” em sua organização. Por “republicanos” ele quer dizer não que eles devam ser democracias mas apenas que as funções executiva e legislativa do Estado devem ser distintas. (Com efeito, ele diz que democracia, “a bem da verdade,” é “necessariamente um despotismo” pois nela ambas as funções executiva e legislativa dos governos estão investidas em uma só entidade, “o povo.”) Ele esperava ansiosamente pelo estabelecimento de uma “liga das nações” (Völkerbund”), todas as quais livremente adotariam uma forma republicana de governo.

Seria difícil exagerar a influência desse ensaio de Kant. Ele está por trás de esfoliações progressistas como os “Quatorze Pontos” de Woodrow Wilson; em particular o ponto final, em que se buscava ansiosamente o estabelecimento de uma Liga das Nações. A bem da verdade, consegue-se sentir o coração do ensaio batendo nas sonoras frases do Pacto Kellog-Briand, de 1928, o qual proibiu a guerra. Vale a pena notar que entre os quinze membros iniciais que assinaram aquele pacto de nome tão nobre, juntamente aos Estados Unidos, França e Inglaterra, estavam Alemanha, Itália e Japão. O que isso nos ensina sobre a tolice de acreditar em proclamações feitas em papel não suportadas pela autoridade da força física? Uma coisa é decretar a ilegalidade da guerra; outra totalmente diferente é fazer cumprir o decreto.

O ensaio de Kant também inspirou, diretamente, os idealizadores da Organização das Nações Unidas e, nos dias correntes, os idealizadores da União Europeia e os batalhões de progressistas transnacionais que descartam a democracia em favor de um ideal mais ou menos nebuloso (mas não, portanto, não-coercitivo) de cidadania mundial.

Eu nem vou me preocupar em arriscar um número de quantos dos histéricos que se reuniram em aeroportos por todo o país para protestar contra o esforço de Donald Trump de fazer os cidadãos americanos mais seguros seriam estudantes de Kant. Sem sombra de dúvida muito poucos. Todos, contudo, são seus herdeiros inconscientes. Peguemos, por exemplo, a ideia de “hospitalidade universal”: como os manifestantes teriam gostado disso! (Se bem que, para ser justo com Kant, ele, ao menos, notou que tal hospitalidade “não é o direito de ser um visitante permanente.”) Eu não tenho dúvida que a motivação dos manifestantes provinha de várias fontes. Mas, na medida em que ela foi baseada em um ideal político (e não apenas pose partidária ou tentativa espúria de ganhar notoriedade e poder), o espírito de Kant estava pairando lá em segundo plano.

Kant, contudo, não era desprovido de senso de humor. Ele começa seu ensaio destacando que seu título foi apropriado de uma placa em frente a um pub holandês. Nela estava escrito “Pax Perpetua” e abaixo da inscrição estava a imagem de um cemitério. Talvez a perpetuidade da morte seja a única paz que a humanidade realmente esteja buscando. Kant certamente não concordaria, mas foi elegante de sua parte reconhecer que a ideia de uma paz perpétua genuína para a humanidade poderia ser considerada por muitos como nada mais que um “devaneio” de filósofos.

Com efeito, o que tem sido, atualmente, chamado de espírito populista é essa reação que busca despertar-nos daquele “devaneio” – o qual James Madison teria chamado de fantasia “teorética” da classe intrometida, cujas propostas para nossa salvação sempre parecem envolver o crescimento de seus próprios poderes e prerrogativas. Nessa acepção, a questão da soberania também permeia os debates sobre as vantagens relativas e as condições morais envolvidas na oposição existente entre “globalismo” vs. “nacionalismo” – um par de termos quase tão carregados quanto “democracia” e “populismo” – assim como as questões econômicas correlatas sobre subempregos e estagnação salarial. Políticos “teoréticos” podem defender o “globalismo” como condição necessária para o livre comércio. No entanto, há que se reconhecer que o espírito de controle local refreia o projeto cosmopolita de um mundo sem fronteiras com o reconhecimento de que o Estado-nação tem sido o melhor garantidor não apenas da soberania mas também da prosperidade amplamente compartilhada. O que nós poderíamos chamar de ideologia do livre comércio – a aspiração globalista de transcender os entraves decorrentes das identidades nacionais e assumir o controle – é uma abstração que beneficia principalmente seus arquitetos. Como R. R. Reno, o editor de First Things, destacou em uma recente coluna pessoal escrita para o The New York Times, “o globalismo representa uma ameaça para o futuro da democracia porque ele deslegitima a vontade da maioria e transfere a autoridade a uma elite tecnocrata.”

Ao fim e ao cabo, o que James Burnham descreveu como a “revolução gerencial” é parte de um projeto progressista ainda maior. O objetivo desse projeto é, em parte, emancipar a humanidade de fontes tradicionais de autodefinição como identidade nacional, afinidades religiosas, cultura enraizada específica e, em parte, perpetuar e agigantar o aparato que dirigirá a dissolução daí resultante. Burnham acusa essa forma hipertrofiada de progressismo (o que poderíamos chamar de “progressismo antiprogressista”) de ser uma “ideologia do suicídio” que se insinuou para o centro da cultura ocidental. Ele reconhece que sua proposição pode soar hiperbólica. “Suicídio”, ele destaca, pode até parecer “um termo muito emotivo, muito negativo e ‘mau.’” Porém, é parte da patologia que Burnham descreve que tais objeções são “mais frequentemente feitas, acaloradamente, por ocidentais que odeiam sua própria civilização, sempre prontos para relativizar ou mesmo comemorar os ataques desferidos contra ela, e que ajudam, entusiasticamente e com frequência suficiente, a desmantelá-la.” O problema, Burnham percebeu, é que o progressismo moderno imbuiu-nos com uma ética muito abstrata e vazia para inspirar comprometimento real. O progressismo moderno, diz ele, não oferece ao homem comum motivos convincentes para o sofrimento pessoal, o sacrifício e a morte. Não há dimensão trágica nesse projeto de “vida ideal”. Os homens somente se dispõem a sofrer, sacrificar-se e morrer por Deus, pela família, por sua honra, sua nação, por uma noção de dever absoluto ou uma visão exaltada da história… E são precisamente essas ideias e instituições que o progressismo tem criticado, atacado, e em parte derrubado como sendo algo supersticioso, arcaico, reacionário e irracional. No seu lugar o progressismo propõe um conjunto de abstrações pálidas e exangues – pálidas e exangues justamente pela razão de que elas não têm raízes no passado, no sentimento humano profundo e no sofrimento. Exceto para mercenários, santos e neuróticos, ninguém está disposto a se sacrificar e morrer por educação progressista, saúde pública, humanidade abstrata, pela ONU ou por um aumento de dez por cento nos benefícios da previdência social.

Segundo Burnham, a função principal do progressismo é “permitir à civilização ocidental reconciliar-se com sua decomposição”, para encarar fraquezas, falhas e até mesmo o colapso não como uma derrota mas “como a transição para uma nova e mais elevada ordem na qual a humanidade em sua inteireza se unirá em uma civilização universal que evoluiu acima das distinções paroquiais, das divisões e discriminações do passado.”

O que tem sido chamado de “populismo” é justamente uma reação visceral contra essas forças de dissolução.

(Continua.)

Leia a primeira parte clicando aqui. E a segunda aqui.

 

Roger Kimball, crítico cultural norte-americano, é o editor da revista The New Criterion e autor de vário livros, dentre os quais, “Radicais nas Universidades – Como a Política Corrompeu o Ensino Superior nos Estados Unidos da América” e “Experimentos Contra a Realidade – O Destino da Cultura na Pós-Modernidade”.

Tradução: Filipe Catapan

 

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