O pensamento político de Marcel Proust
Por Hadrien Gournay. Publicado em 2 de janeiro de 2018.
Arquivo MSM.
Marcel Proust é conhecido por tudo exceto por suas ideias políticas. No entanto, elas estão implícitas em seus textos, e merecem atenção.
À primeira vista, não há nada mais distante de todo pensamento político que Marcel Proust e sua obra. Para quem só a conhece de segunda mão, ou faz uma leitura muito rápida de sua obra, ele representará, sem dúvida, o protótipo do escritor afetado, se interrogando ao infinito sobre suas menores impressões, ou do artista mundano descrevendo escrupulosamente as tiradas espirituosas dos jantares aristocráticos. Tais referências seriam próprias para situar o romancista num vago conservadorismo mundano, posto à distância de toda preocupação política e social.
O caso Dreyfus
No entanto, quem se interessar pela biografia de Marcel Proust perceberá rapidamente que ele foi dreyfusista e se engajou, dentro dos limites de um homem jovem, como ele era então, mas com paixão, no combate pela revisão do processo.
O dreyfusismo orienta posteriormente seu engajamento político em um campo bem determinado, à esquerda do espectro político numa época que viu se desenvolver a figura, o papel e o prestígio do intelectual. A partir daí, o dreyfusismo implicará numa atitude combativa em relação às principais correntes ou instituições antidreyfusistas, que foram o exército, a Igreja Católica e o nacionalismo. Qual foi, portanto, a posição de Marcel Proust em relação a elas?
O Exército
Proust prestou serviço militar. Quando se considera o dândi mundano ou o jovem homem ainda afetivamente dependente de sua mãe, tudo sugere que ele deve ter tido uma lembrança amarga desta experiência. De fato, ele terminou seu serviço militar em 63º lugar, entre 64 recrutas. No entanto, em Le Coté de Guermantes, terceiro volume de À la recherche du temps perdu, a experiência militar do narrador é descrita com uma doçura particular. A transposição ao romance da vida do romancista é aqui legitima? A disciplina e os horários impostos teriam levado calma interior e serenidade a um moço cuja falta de vontade era o defeito principal?
No entanto, aceitando essa interpretação, permanece difícil lhe dá um significado político e descartar uma hostilidade do escritor em relação ao exército.
Proust evoca seu dreyfusismo e sobretudo exprime sua posição em relação ao exército da maneira mais clara numa carta endereçada ao ex-tenente Pierre d’Orleans, no dia 30 de novembro de 1899, em plena comoção dreyfusista:
“Você me pergunta se eu já me esqueci que eu tive como chefe um Walewski, um Neuville. Certamente não, eu não o esqueci. Eu guardo deles a lembrança mais respeitável, mais submissa. E estes não são os únicos a quem eu presto veneração. Eu penso também no coronel Arvers, no comandante Appert. A afeição que eu guardo individualmente aos chefes que foram tão bons para mim, eu a sinto também, de uma maneira mais abstrata, pelo exército em geral. O desenvolvimento de minhas ideias aos poucos me levaram a considerá-lo como o estilo de vida com o qual eu mais simpatizo.”
Nação e nacionalismo
Para tratar das questões do nacionalismo e do patriotismo, nós poderemos nos basear em sua obra romanesca e mais particularmente sobre o último volume de “À La recherche du temps perdu”, em que a Grande Guerra aparece, “Le temps retrouvé”. Apesar de uma possível, mas pouco provável, autocensura dado o contexto germanofóbico da guerra e do pós-guerra imediato, e apesar da distância existente entre um romancista e um narrador, nós podemos apostar que estamos próximos do pensamento do próprio Proust.
Às diferentes personagens correspondem diferentes atitudes diante da guerra, as quais o contexto e as relações do narrador permitem apreciar com justiça. O patriotismo tolo do clã Verdurin, o germanismo e o derrotismo de um Charlus, proveniente de uma reação à tolice dos membros do primeiro grupo, e enfim a atitude heroica de Saint-Loup, morrendo no front por dever e patriotismo mas tendo conservado seu amor pela Alemanha, compõem o conjunto de suas reações à guerra.
Citemos aqui duas passagens, muito próximas no interior da obra.
Na primeira, o narrador ironiza a propaganda de guerra.
“O copeiro não podia admitir que os comunicados não fossem excelentes e que as tropas não se acercassem de Berlim, já que lia: “Rechaçamos o inimigo com grandes perdas, etc.” feitos que celebrava como novas vitórias. Preocupava-me todavia a rapidez com que se aproximava de Paris o teatro dessas vitórias, e espantou-me que o copeiro, tendo lido a notícia de um combate perto de Lens, não se assustasse ao ver no jornal do dia seguinte que as consequências desse encontro nos haviam sido finalmente favoráveis em Jouy-le-Vicomte, onde era firme a nossa posição. Era-lhe entretanto familiar o nome de Jouy-le-Vicomte, localidade não muito distante de Combray. Mas lêem-se jornais como se ama, com uma venta nos olhos. Ouvem-se as doces expressões do redator-chefe como as de uma amante. Pode ser derrotado e feliz quem se julga, não vencido, mas vencedor.”
(“Le Temps retrouvé”, p. 38, tradução de Lúcia Miguel Pereira, Editora Globo, 1983).
O segundo mostra o heróico Saint-Loup, que conservara todo seu amor pela Alemanha:
“Para dar-me a perceber certas oposições de sombra e luz que lhe haviam enchido “de encanto a manhã”, lembrava alguns quadros que ambos apreciávamos e não temia aludir a uma página de Romain Rolland, ou mesmo de Nietzsche, com a independência dos combatentes, que não temem como os inativos pronunciar nomes alemães, e até com aquela ponta de vaidade de citar o inimigo que levara, por exemplo, o Coronel Paty de Clam, na sala das testemunhas da questão Zola, a recitar de passagem, diante do poeta Pierre Quillard, “dreyfusard” exaltado, a quem aliás não conhecia, versos de seu drama simbolista, “La Fille aux mains coupées”. Mencionando uma melodia de Schumann, Saint-Loup dava o título só em alemão, e não recorria a nenhum circunlóquio para dizer que quando, de madrugada, ouvira à entrada de uma floresta o primeiro gorjeio, sentira-se transportado, como se lhe falasse o pássaro daquele “sublime Siegfried” que esperava tornar a ouvir depois da guerra.”
(“Le Temps retrouvé”, p. 40, tradução de Lúcia Miguel Pereira, Editora Globo, 1983).
Disso, nós concluímos que Proust não era pacifista. A admiração pelo heroísmo patriótico e o respeito pelos deveres do soldado são compatíveis com a ausência de ódio, com o respeito, até mesmo com o entusiasmo por uma nação estrangeira.
Mas é sem dúvida em relação com as questões literárias e na conclusão do romance que a consideração mais decisiva sobre a questão do patriotismo foi formulada:
“No início da guerra, já dizia Barrès que um artista (no caso Ticiano) deve antes de tudo servir à glória de sua pátria. Mas só como artista o pode fazer, isto é, com a condição de, ao estudar as leis da Arte, ao tentar suas experiências e fazer suas descobertas, tão delicadas como as da Ciência, não pensar em nada – nem na pátria – além da verdade que tem diante de si. Não imitemos os revolucionários desprezando, por ‘civismo’, quando não as destruíam, as obras de Watteau e La Tour, pintores que honravam mais a França do que todos os da Revolução.”
(“Le Temps retrouvé”, p. 136 e 137, tradução de Lúcia Miguel Pereira, Editora Globo, 1983).
A religião
Depois do caso Dreyfus, a grande questão política que dividirá a França será a separação entre a Igreja e o Estado. Seria muito cômodo e tentador criar ligações entre os campos que as duas crises ajudaram a formar. Os antidreyfusistas, majoritariamente católicos, deveriam naturalmente se opor a separação que os dreyfusistas deveriam apoiar, no mínimo por hostilidade à Igreja Católica. A atitude do dreyfusista Marcel Proust seria tão previsível quanto esse raciocínio dá a entender?
Em seguida à lei das associações, sua tendência é num primeiro momento defender a Igreja. Ele se explica numa carta a Lauris, datada de 29 de julho de 1903, negando qualquer incoerência com seu engajamento dreyfusista:
“O interesse imediato era então corrigir as injustiças do Estado Maior, hoje é corrigir as injustiças do governo, nesse momento os socialistas, sendo anticlericais, caem no mesmo erro que em 1897 caíram os clericais, sendo antidreyfusistas,”
Ele acrescenta que a repressão à Igreja e particularmente o fato de proibir as congregações teria efeitos contrários aos objetivos declarados.
“As congregações despedaçadas, o catolicismo extinto na França (se fosse possível ser extinto, mas não é pelas leis que as ideias e as crenças desaparecem, mas quando o que elas têm de verdadeiro ou de socialmente útil se corrompe ou diminui), os clericais, os clericais descrentes ainda mais violentamente antissemitas, antidreyfusistas, antiliberais seriam tão numerosos e cem vezes piores”.
Enfim, Proust, o agnóstico, se sente atraído pela Igreja:
“há uma filosofia jesuíta, uma arte jesuíta, uma pedagogia jesuíta, haveria também uma arte anticlerical?” “Baudelaire se sentia atraído pela Igreja, ao menos pelo sacrilégio”, “eu confesso que prefiro encontrar num convento religiosos que restabelecem a música beneditina que um leiloeiro judicial a vender tudo”
Ele vai ainda mais longe num artigo publicado no Le Figaro, no dia 16 de agosto de 1904.
O artigo, chamado “La mort des cathédrales, une conséquence du projet de loi Briand sur la séparation”, reagia em primeiro lugar à possibilidade, inscrita no resumo do projeto da lei Briand, de permitir ao Estado modificar a natureza jurídica das catedrais num prazo de cinco anos e permitir ao governo, em consequência, lhes dar o uso que achar conveniente.
Combinando ironia e ficção política, Proust imagina um governo futuro tentando restituir vida às catedrais subsidiando as cerimônias católicas e sábios redescobrindo o significado desses monumentos. Os esnobes se dirigiriam a Amiens, Chartres, Bourges, Laon, Paris, Reims, mas isso não traria de volta as cerimônias perdidas.
“Eis o que se diria se a religião católica não existisse mais e se os sábios dessem uma de sabichões ao recuperar os ritos, se os artistas estivessem tentando ressuscitá-los para nós”
O principal argumento de Proust é que o valor estético das catedrais é inseparável de suas funções.
“a liturgia é inseparável da arquitetura e da escultura de nossas catedrais, pois tanto umas quanto as outras derivam de um mesmo simbolismo”
“jamais um espetáculo comparável, espelho tão grande da ciência da arte e da história, foi oferecido aos olhares e à inteligência do homem”
Em dezembro de 1906, no momento da adoção definitiva da lei, este aspecto do projeto Briand não foi incluído e seu julgamento será mais moderado. Ele julgará a Igreja “desinteressada, mas estúpida”, admirará a moderação de Briand, que “amorteceu o golpe final” e culpará “a obstinação do pobre e insensato papa Pio X”.
Presumindo que nem Napoleão nem Luís XIV teriam suportado “o que Briand suportou do Papa”, ele concluirá:
“Antigamente, quando o clero nunca teria tido este espírito elevado ou no mínimo esse desinteresse que o faz, para obedecer ao Papa, renunciar a todos os seus bens, seria pior. A força é, de qualquer modo, pouco importante, pois o Papa não tem mais exército nem território e mesmo assim ele é mais poderoso (mesmo na França, e é aonde ele é menos) do que jamais foi nos dias de seu poderio material”.
De um modo geral, dois temas dominam a reflexão de Proust sobre a questão da separação da Igreja e do Estado: a religião católica considerada como um patrimônio vivo a preservar mesmo do ponto de vista de um ateu ou de um agnóstico, e o caráter inútil ou nefasto de toda repressão para os objetivos do governo que pretender exercê-la.
Proust tinha escrito a Lauris que sua oposição à separação entre a Igreja e o Estado, ao menos em suas formas iniciais, não estava em contradição com seu engajamento dreyfusista. Mas os anos não o teriam feito refletir sobre suas ideias de juventude? Justamente em 1906-1907 o caso voltava a atrair as atenções devido à reabilitação de Dreyfus. No dia 18 de junho de 1906 Proust escrevia à Madame Strauss:
“pouco importa que eu ache que Dreyfus é idiota e indiscreto de perseguir uma reabilitação que o universo inteiro (o universo dreyfusista, o outro nunca se converterá) referendou, eu que tinha esquecido um pouco tudo isso, eu penso que está tudo na mesma posição ao reler estas coisas e pensar que isso pode se passar a alguns anos na França e não entre os apaches. O contraste que há entre de um lado a cultura, a distinção da inteligência, e de outro o barulho uniforme dessas pessoas e sua infâmia moral é assustador.”
Quase ao mesmo tempo, Proust sente pena, no entanto, do General Mercier, desdenhado na tribuna do senado, numa carta de 16 de julho de 1906 destinada à condessa de Noailles e depois “Marcel (…) se interessa de novo pela vida política por achar inoportuna, como liberal, a vitória do Bloco de Esquerda nas eleições do dia 20 de maio”.
Esse liberalismo acha sua expressão mais perfeita em seu ensaio Contre Sainte Beuve:
“No mundo da matéria e da força se pode destruir para criar, utilizar o mal, se servir dos contrários, subordinar os meios ao fim. Não se é assim no mundo da Justiça e do Amor. Os anarquistas, que imaginam que depois de ter conquistado o mundo pela injustiça farão reinar a Justiça, que pensam fazer triunfar a Caridade pela violência, desconhecem o sentido das palavras Justiça e Caridade e a natureza dessas virtudes. Todas as fortunas poderiam ser igualmente distribuídas pela força. Jamais a justiça estaria mais longe de reinar sobre o mundo. Os antissemitas, sendo violentos, difamadores e cheios de preconceitos, poderão converter pela força o universo ao catolicismo. Nesse dia, o universo será descristianizado, posto que cristianismo significa Deus interior, verdade desejada pelo coração, de acordo com a consciência. Não se deve submeter jamais a uma obrigação obscura, longínqua e incerta uma obrigação clara, imediata e precisa de Justiça e de Caridade”.
Todavia, esse liberalismo proustiano conhecia ao menos uma exceção, e de vulto, em relação às preocupações do autor. Quando, no final de agosto de 1904, o Arts et la vie interroga Proust sobre as belas-artes e o Estado, ele não envia sua resposta ao jornal, temendo desagradar seu redator, Maurice Le Blond, o qual acreditava que o Estado não tinha o direito de subjugar os temperamentos, denunciando a tirania secular da Academia Francesa à Roma. É que Proust acreditava que o Estado não tem o poder de subjugar os temperamentos, ao contrário da influência de um gênio: “o grande tirano é o amor, e se imita servilmente o que se ama quando não se é original”.
Muito mais ele falará, em várias ocasiões, sobre o papel salutar das restrições, mesmo para os artistas de gênio. Em À la recherche du temps perdu, a personagem de Francisca, a camareira, é encarregada de exprimir este paradoxo.
“Mas, principalmente, da mesma forma que os escritores chegam muita vez a um poder de concentração de que os teria dispensado o regime de liberdade política ou de anarquia literária, quando estão atados de pés e mãos pela tirania de um monarca ou de uma poética, pelas severidades das regras prosódicas ou de uma religião de Estado, assim Francisca, como não podia replicar-nos de uma maneira explícita, falava como Tirésias e teria escrito como Tá cito. Sabia fazer com que coubesse tudo o que não poderia expressar diretamente em uma frase que não podíamos incriminar sem nos acusarmos, em menos de uma frase até, num silêncio, na maneira como colocava um objeto.
Assim, quando me ocorria deixar, por descuido, em minha mesa, entre outras cartas, uma determinada que Francisca não deveria ver, porque ali se falava nela, por exemplo, com uma malevolência que era de supor fosse igual tanto no destinatário como no remetente, quando à noite eu regressava inquieto e ia direto a meu quarto, sobre minhas cartas arranjadas em ordem numa pilha perfeita, o documento comprometedor ressaltava antes de tudo a meus olhos, como não podia deixar de ter ressaltado aos de Francisca, colocada por ela bem em cima, quase à parte, numa evidência que era uma linguagem, tinha a sua eloqüência e, desde a porta, me fazia estremecer como um grito. Primava em arranjar essas encenações destinadas a informar tão bem o espectador, na sua ausência, que este sabia já que ela sabia de tudo, quando em seguida Francisca fazia a sua entrada. Possuía, para fazer falar assim um objeto inanimado, a arte ao mesmo tempo genial e paciente de Irving e de Frédéric Lemaître.”
(“Le Côté de Guermantes”, tradução de Lúcia Miguel Pereira, Editora Globo, 1983).
“No homem mais perverso há um pobre cavalo inocente que pena, um coração, um fígado, artérias onde não há condições para a malícia e que sofrem. E a hora dos mais belos triunfos é estragada porque há sempre alguém que sofre.”
Marcel Proust liberal?
No fim das contas, é possível reunir dentro de uma denominação política única as posições de Proust sobre esses diferentes temas? Seu biografo Jean-Yves Tadié se arrisca duas vezes no jogo das qualificações: “O estudante de filosofia confirma (…) em política, um conservadorismo liberal” ( Marcel Proust I, p 133, Editora Folio, 1999).
Publicado em Contrepoints.
Tradução: Flamarion Daia