As ideologias de massa deram à humanidade os maiores assassinos da história: Hitler, Stálin e Mao Tsé-Tung.
O conceito de ideologia é altamente mal compreendido. Pessoas utilizam-no o tempo todo para descrever o que ou, mais precisamente, como pensam, ainda que não estejam de fato engajadas em sua aplicação teorética ou prática. Ao fazê-lo, estão involuntariamente dando à ideologia um poder imerecido, tornando o próprio termo uma realidade todas as vezes em que é usado de modo positivo. Mas este é o menor dos problemas que enfrentamos quando se trata de ideologia.
Seja criticada ou admirada, a ideologia é quase sempre utilizada em um contexto político. Ela pode representar um governo, um regime, um partido ou mesmo a política em geral. Tais observações, embora importantes, permanecem na superfície e acabam meramente por descrever eventos políticos corriqueiros, mal chegando ao cerne da questão – a saber, a definição mesma de ideologia.
Embora sem qualquer pretensão de definir a ideologia de modo absoluto e de uma vez por todas, gostaria de esclarecer aqui certos aspectos que tendem a ser negligenciados. Precisamos nos perguntar quais são algumas de suas raízes e qual é seu mais básico propulsor. A ideologia certamente atinge a esfera pública da vida, mas minhas alegações e investigações estão mais interessadas no modo como esta toca sua esfera privada. De que maneira a vida de um indivíduo é afetada e modificada se este permite a impregnação da ideologia em sua vida interior?
Uma das maneiras pelas quais a ideologia se insere na vida das pessoas é disfarçando-se como um sistema, fundamentalmente metafísico. Em outras palavras, ela finge ser filosofia quando na verdade é tudo menos isso. A filosofia, em seu âmago, é interessada pela verdade, pelo que é o bem e o mal, pelo que faz a vida valer a pena, pelo belo, entre outras várias questões. Um aspecto que constantemente impulsiona tais perguntas, comuns a todo ser humano, é a liberdade mesma de formulá-las. A liberdade é baseada no fato de que refletimos, deliberamos e possuímos uma dignidade humana inerente. É precisamente o caso oposto da ideologia, visto que esta é uma coerção da verdade. De fato, a inteira raison d’etre da ideologia é a coerção do individual e a aniquilação do livre arbítrio.
As ideologias nunca estão interessadas no milagre do ser. São históricas, interessadas no vir a ser e no morrer, na ascensão e queda das culturas, mesmo que busquem explicar a história através de alguma ‘lei da natureza.’
HANNAH ARENDT (1906 – 1975)
Em primeiro lugar, a ideologia se serve de táticas psicológicas e trabalha sob o princípio do engano seguido de desorientação. Em segundo lugar, ela reduz o ser humano a uma entidade política estática sem vida interior e sem conexões familiares ou relações com sua comunidade, negando, portanto, a complexidade do ser. Esta redução do eu existencial de um indivíduo o totaliza em uma série de segmentos fortuitos que nega a ordem das coisas (esta primeira e segunda características da ideologia frequentemente se justapõem). Em terceiro lugar, promete perfeição, utopia, e a cura absoluta de tudo de que padece nossa sociedade. Examinemos, pois, cada um destes três atributos.
O engano, por sua própria essência, depende da criação de ilusões. Este nega o presente e a realidade e cria um passado alternativo, apagando os eventos históricos que não sirvam à causa ideológica du jour. Mas isto não é apenas uma mera ilusão. Ilusões, às vezes, têm a função de expressar uma verdade maior a respeito de nossa sociedade. A ilusão ideológica é uma mentira.
Um destes engodos é a afirmação de que ideologia envolve pensamento crítico e análises filosóficas. Tal afirmação desorienta imediatamente o observador que se esforça para entender o mundo e o lugar que nele ocupa. Embora Eric Voegelin não se refira literalmente à ideologia em sua obra Science, Politics and Gnosticism [*], sua discussão e crítica ao pensamento gnóstico e seus impactos no mundo político permanecem relevantes ainda hoje. Particularmente, a distinção de Voegelin entre o discurso da busca da verdade e aquilo que chamou de “proibição das perguntas” [1] esclarece a diferença estrutural crucial entre filosofia e ideologia.
Referindo-se à análise platônico-aristotélica, Voegelin escreve: “Seu objetivo é o conhecimento da ordem do ser, dos níveis de hierarquia do ser e suas inter-relações, da estrutura essencial dos domínios do ser e especialmente da natureza humana e seu lugar na totalidade do ser. A análise, portanto, é científica, e leva a uma ciência da ordem pelo fato de que – e na medida em que – é ontologicamente orientada.” [2] A frase chave aqui é “ontologicamente orientada”, significando que o ato de pensar tal como explicado por Voegelin é intrinsecamente conectado à totalidade do ser. Não apenas isto, mas seu objetivo é o de perscrutar em quem somos, o que inevitavelmente nos levará também a questões éticas.
De acordo com Voegelin, “apenas quando a ordem do ser como um todo, até sua origem no ser transcendente, vem à tona, pode a análise ser empreendida com alguma esperança de sucesso; apenas então podem as opiniões atuais sobre a ordem correta ser examinadas em termos de sua concordância com a ordem do ser” [3]. O que Voegelin está brilhantemente assinalando é que há uma hierarquia do ser – não apenas um ser individual mas também um que está para além. Como pode a política sequer existir e ser funcional se uma hierarquia é intelectualmente desconsiderada?
A principal finalidade da ideologia é acumular poder, e para isso precisará negar a constituição individual do ser humano. É por isso que seu primeiro atributo (engano) e o segundo (redução do ser humano a uma entidade política) estão tão relacionados. Voegelin discute a obsessão por poder em sua referência à “vontade de poder” nietzschiana e à libido dominandi, que continuamente criam o que o próprio Nietzsche chamou, em O Nascimento da Tragédia, de “uma duplicação de máscaras”. Um ideólogo engana, mas a pessoa enganada também é chamada à questão e carrega alguma responsabilidade nesta relação de poder. Voegelin insiste que todos tenhamos verdadeiramente uma escolha – a de ir contra esta enganação ou nos deixarmos desaparecer, ontologicamente falando. De outro modo, como as máscaras de Nietzsche que continuam se duplicando, assim também o fazem as mentiras, que na ideologia tendem a se tornar parte de uma realidade de esfera pública. O problema filosófico diante de nós, entretanto, é: como uma mentira pode se tornar uma realidade vivenciada?
O primeiro passo do ideólogo, como vimos, é enganar. A desorientação que se segue é inevitável. Qualquer ideia de cosmos ordenado que o indivíduo possa ter tido desaparece e é substituída por um estado de ser inatural, que quase sempre envolve a ausência de questionamento da parte da pessoa enganada e desorientada. Mas de modo a realizá-lo, o ideólogo está determinado a desumanizar o sujeito (que, em essência, a essa altura já tornou-se objeto) e forçá-lo a uma existência a qual segue uma ditadura do coletivo. A única opção é derivar sua identidade de um grupo particular que preza o relativismo e o bem do coletivo sobre o bem do indivíduo. Em outras palavras, ele está proibido de fazer perguntas, como conclui Voegelin.
Mas esta não é a única coisa que se espera de um objeto de desorientação e desumanização ideológica. De modo a viver uma vida ideológica, é necessário abandonar sua vida interior. Esta é a parte mais complexa da existência humana, pois envolve as memórias, dores, sofrimentos e alegrias do sujeito, bem como suas conexões com sua família e amigos – espantos e deslumbramentos do ser. Mas como observa Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo, “As ideologias nunca estão interessadas no milagre do ser. São históricas, interessadas no vir a ser e no morrer, na ascensão e queda das culturas, mesmo que busquem explicar a história através de alguma ‘lei da natureza.’” [4] Portanto, ao escolher a existência falsa da ideologia, um indivíduo não apenas desumaniza suas conexões familiares (que incluem a religião e a cultura) mas também seu próprio eu.
Desumanizar um indivíduo é remover sua constante individuação ou o desvelamento do espírito humano em florescimento. A única coisa que segue é o engano que repetidamente desmonta a realidade. Este existe fora de “toda a experiência”, e “insiste numa realidade ‘mais verdadeira’ que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis, que as domina a partir deste esconderijo e exige um sexto sentido para que possamos percebê-la.” [5] A ideologia, então, é conhecedora de algum tipo de segredo que irá libertar o indivíduo dos grilhões de sua velha existência e das amarras de uma cultura ou religião em particular.
O segredo é a promessa de um mundo melhor (terceiro atributo) pela qual a ideologia se investe contra todos os males da sociedade, e é talvez a maior enganação dentre todas. A primeira questão, aí, é que são os próprios ideólogos quem irão determinar quais são estes males, apontando frequentemente as religiões ou qualquer coisa que exija liberdade da mente e do coração.
Esta promessa quase nunca é baseada em fatos e, ainda que houvesse qualquer tonalidade de idealismo em sua inoculação, este se esvairia rapidamente, pois um ideólogo faz de si mesmo um deus, um ser que desconhece qualquer limitação humana e que, como resultado, carece de prudência ou de qualquer outra virtude em suas ações. Ele é constantemente compelido a agir sem um momento sequer de contemplação de suas atitudes, afinal a ideologia, tal como expressa em um governo totalitário, proclama que “todos os homens tornaram-se Um-Só-Homem, onde toda ação visa à aceleração do movimento da natureza ou da história…”. [6] Mas este movimento é um triste e niilista laço temporal que gera revoluções desnecessárias e vazias umas após as outras. A promessa sempre envolve um trabalho no qual o indivíduo é proibido de expressar sua voz própria e singular, sendo antes engolfado pelo barulho das doutrinações e das repetições infelizes, até ter sido sido reduzido à mesmice de todos os ludibriados.
Uma vez que esta redução e o desmantelamento da ontologia de um indivíduo se completam, a ideologia então se torna totalitarismo – uma realidade vivenciada que começou com uma mentira e sempre termina na aniquilação da vida humana. O único caminho para escapar disso é reconhecer a dignidade humana inerente e se dispor a um encontro cara a cara com o outro. Nesta relação, não apenas estaremos humanizando este outro mas também a nós mesmos.
Emina Melonic é doutoranda em Literatura Comparada na Universidade de Buffalo. Possui um BA em Inglês, Alemão e História da Arte pelo Canisius College; MA em “Humanities” pela Universidade de Chicago; MA em Filosofia pela Universidade de Buffalo; e um MA em Teologia pelo Christ the King Seminary. Seus trabalhos foram publicados na National Review, The Imaginative Conservative, The New Criterion, American Greatness e Splice Today, entre outros.
Publicado originalmente no Voegelin View.
A tradução, de Daniel Marcondes, foi publicada no Cultura de Fato – https://culturadefato.com.br/