A manha do Barão de Itararé
Desmontando conceitos, crenças e verdades estabelecidas, o Barão de Itararé revirou tudo de cabeça para baixo, estabelecendo um novo juízo para a compreensão de pessoas, instituições e coisas de sua época.
No ensaio sobre a significação do cômico, o filósofo Henri Bergson diz que o riso, em certas situações, nasce do entrechoque “da rigidez do mecânico com o flexível”. Teoricamente, a coisa soa um tanto hermética. Mas o francês ilustra suas palavras evocando a imagem do sujeito que dá uma topada na rua, cai e provoca o riso pelo efeito da rigidez mecânica onde deveria haver maleabilidade. Já Freud, em seu “O Chiste e sua relação com o inconsciente”, considera, analisando o cômico a partir do uso da palavra, que o riso se origina ao se desmontar o sentido de uma frase ou de um conceito bem comportado, para em seguida reconstruí-lo em cima de um modelo risível.
A explicação de Freud sintetiza melhor a graça corrosiva do Barão de Itararé, considerado por várias gerações, desde os anos 1920, como o melhor e mais dotado humorista brasileiro. Com efeito, desmontando conceitos, crenças e verdades estabelecidas, o Barão revirou tudo de cabeça para baixo, estabelecendo um novo juízo para a compreensão de pessoas, instituições e coisas de sua época. Investindo contra a rigidez do entendimento mecânico socialmente consagrado, ele desarticula a realidade aparente, para dar a esta mesma realidade um sentido surpreendente e mordaz. Por exemplo: ao verificar que ao sair com uma mulher gostosa o sujeito pode provocar, sem querer, a cupidez do próximo, inverteu o sentido da frase tradicional com uma simples troca de palavra: “Antes só do que bem acompanhado”.
De fato, na sua mordacidade compulsiva, o humorista espicaçou totens & tabus. Nada, ou quase nada, ficou fora do alcance do seu espírito iconoclasta: a mendacidade de ministros boquirrotos, a burrice das figuras preeminentes, a sem-vergonhice genética dos governantes, a intolerância das “autoridades constituídas”, a corrupção dos meios oficiais, a malandragem da vida acadêmica e, em especial, a desonestidade do jornalismo servil – só para ficar no genérico.
Para expressar o seu humor corrosivo, de larga abrangência, o gaúcho Aparício Torelly, mais tarde feito Barão de Itararé, fundou no Rio de Janeiro, em 1926, o tablóide A Manha – “órgão de ataques de… riso”-, jornal que não tinha expediente, pois, segundo o Barão, “jornal sério não vive de expediente”. Ele fazia o semanário praticamente sozinho e neste espaço crítico viu cair a República Velha representada pelo governo café-com-leite de Washington Luiz (a quem chamava de Vaz Antão Luiz), nascer e morrer a Revolução de 30, acicatada pelas esporas da “ditabranda” de Getúlio Vargas (a quem chamava de G. Túlio Dor Nelles Vargas) e a testemunhar, com empenho pessoal, a redemocratização do país.
A vida do Barão teve lances admiráveis. Por ocasião da comemoração dos seus 25 anos de jornalismo, em 1945, quando ainda sobrevivia a ditadura Vargas, o lendário Herbert Moses, então presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), resolveu homenageá-lo, enaltecendo-o como um incansável combatente da liberdade. A fala de agradecimento do humorista foi antológica.
Disse ele, na ocasião: “O Brasil foi descoberto, por acaso, em 1500, e ficou sendo Colônia de Portugal até 1822, mas não por acaso. Nesse ano, para continuar mandando, um príncipe português proclamou a independência do Brasil e o país, desde então, passou a fazer dívidas por conta própria, ficando cada vez mais dependente dos credores. Em 1889, foi proclamada a República, a qual foi passando por muitos estados de evolução, entre os quais o estado de sítio, o estado de emergência, o estado de guerra e o Estado Novo, que é, afinal, o estado a que chegamos”.
E, para o delírio da platéia, arrematou: “É preciso combater sempre. Discordo da teoria de que os povos empenhados na luta pela democracia devam esperar o seu desfecho para concretizar suas aspirações. É no próprio curso do conflito que se afirmam os valores dos que prezam a liberdade. Por isso, não compreendo um combatente dependendo de um relógio de pulso, embora seja verdade que todo combatente deva ter pulso para lutar, mesmo que não tenha relógio”.
Durante a sobremesa do almoço de confraternização, Itararé fez inesperada revelação sobre a própria fidalguia: “Confesso aos senhores que antes de me fazer barão eu pensei em me tornar duque. É preciso explicar: havia um duque, sogro de Portinari, que fora bailarino. O Brasil já era muito grande para tão poucos duques, mesmo sendo um deles o Duque de Caxias. Assim, nada mais natural que eu também fosse duque. No meu esquema, apenas três duques figurariam nas páginas rutilantes da nossa história: o Duque de Caxias, que brigava, mas não dançava; o Duque Dançarino, que dançava, mas não brigava; e eu, Itararé, que brigo e danço conforme a música”.
Como se há de convir, o método humorístico do Barão tinha dialética adequada. Ele consistia em realizar um jogo cadenciado na desestruturação das frases para expressar o seu pensamento da forma mais elaborada possível, obtendo, com isso, o envolvimento hipnótico do leitor e levá-lo, pelo riso, a pensar seriamente – o que, como sabem os profissionais do ramo, é coisa muito difícil. De tal modo que os seus leitores mais ardorosos passaram a apontá-lo como o Bernard Shaw do Brasil, comparação que ele descartou solenemente, ao considerar o dramaturgo inglês como o “Itararé da Inglaterra”.
No plano político, embora eleito vereador no Rio de Janeiro pelo Partido Comunista, em 1947 – antes, portanto, da desestalinização -, o humorista não era propriamente uma alma totalitária. Pelo contrário. No momento oportuno ele deixava o engajamento de lado e era capaz de afirmar que Luiz Carlos Prestes era “O que cavaleiro da Esperança Malograda” e que, com o líder comunista, “ninguém conversa, pois ele fala sozinho”.
E sobre a sua atuação político-partidária na Câmara de Vereadores do Rio, conhecida como a “Gaiola de Ouro”, radicalizou: “Foi uma das grandes coisas que me aconteceram na vida contra a minha vontade. Eu quero fazer silêncio tétrico sobre este assunto”.
Ipojuca Pontes é cineasta, jornalista, e autor de livros como A Era Lula, Cultura e Desenvolvimento e Politicamente Corretíssimos. Também é conferencista e foi Secretário Nacional da Cultura.
Publicado em 7 de setembro de 2008.