Sobre Che Guevara, pessoal realmente boas e lorota marxista

Por Percival Puggina

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Carta a jovem fã de Ernesto ‘Che’ Guevara
O moço manifestara dissabor com meu artigo “O vampiro argentino”. Bem educado, em texto correto e movido por evidente boa intenção, ele se desgostou quando me referi ao fato de “jovens que não sabem apontar com o nariz para que lado fica a Bolívia e que não conseguiriam escrever meia página sobre os episódios de Cuba andarem pelas ruas ostentando camisetas com a estampa do Che“. O meu leitor sabia as duas coisas e se magoou. Nas correspondências que trocamos, pedi a ele que em vez de apontar a Bolívia, me indicasse suas razões para reverenciar a memória do argentino. Respondeu-me que seu herói “renunciou às comodidades de que desfrutava como médico, buscou viver e alcançar seus ideais, lutou e deu a própria vida pelas suas convicções“. E acrescentou que se havia algo que ele prezava e respeitava era “a coragem e a iniciativa de uma pessoa“.

Imagino que esse leitor não seja o único que firma sua admiração a Che Guevara nas mesmas bases. Transcrevo aqui minha resposta na esperança de que sirva para outros em idêntica situação.

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Caro jovem: as razões que apontas estão muito mais no plano da reverência a certos sentimentos do que em fatos que os expressem de modo louvável. Valorizaste a coragem, os ideais, a renúncia aos confortos e bens materiais e à disposição de dar a vida por algo em que se crê. O problema do Che não estava obviamente aí, mas no uso que fez desses atributos de seu caráter. Tua referência à renúncia aos bens materiais, aliás, me fez lembrar o filme Diários de Motocicleta. Certamente o assististe. Nele, o diretor Walter Salles Jr. comete amazônica injustiça contra as religiosas que atendiam os índios no leprosário de San Pablo, no meio da selva, dezenas de quilômetros a jusante de Iquitos. Che é apresentado nas manipulações do filme como um anjo de bondade e as irmãs como megeras. No entanto, aquelas mulheres passaram suas vidas enfiadas em barracos de madeira, no meio do mato, cuidando de leprosos. Não uma semana. Vida inteira! E não por ódio a alguém, mas por puro amor ao próximo. Quem sabe passas a usar uma camiseta com a estampa das irmãs de San Pablo?

E já que falei em cuidar de doentes, lembro outro caso. Em 1913, um talentoso jovem alemão, com doutorado em filosofia, teologia, medicina e música, exímio organista, considerado o maior intérprete de Bach em seu tempo, muito bem sucedido profissionalmente, decidiu instalar por conta própria um hospital às margens do rio Ogowe, no Gabão. Ergueu-o com as próprias mãos. Como forma de mantê-lo, voltava periodicamente à Europa a dar recitais. Fez isso não por uns dias, mas por toda a vida desde os trinta anos. Em 1953, sua contínua dedicação à tarefa que abraçou lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz. É dele esta frase que bem serviria para a reflexão do vampiro argentino que se dizia sedento de sangue, médico como ele: “Tudo que é vivo deseja viver. Nenhum sofrimento pode ser imposto sobre as coisas vivas para satisfazer o desejo dos homens“. Quem sabe usas uma camiseta com a estampa do pastor Dr. Albert Schweitzer?

A fuga de um prisioneiro do campo de Auschwitz, em 1941 levou o comandante a sentenciar outros dez à morte por inanição. Entre os escolhidos para cumprir a condenação havia um pai de família que muito se lastimava pela orfandade que adviria aos filhos pequenos. Pois um senhor polonês, de nome Maximiliano Kolbe, que estava preso por haver dado fuga a mais de dois mil judeus, se apresentou para substituí-lo e cumpriu a sentença que recaíra sobre seu companheiro de prisão. Com tão justificado apreço pelos valores que apontas, por que não usas uma camiseta com a estampa de São Maximiliano Kolbe?

As pessoas que mencionei, meu jovem (e existem inúmeras assim!) superam Che Guevara em tudo e por tudo. Exercitaram virtudes supremas sem qualquer ódio. Deram quanto tinham, inclusive suas vidas inteiras a seus ideais. Che fez isso? Fez. Mas, se colocou a própria vida em risco, como de fato podia fazer em nome de seus ideais, achou-se no direito de, pelo mesmo motivo, tomar a vida dos outros. E tal direito ele não tinha. Isso é muito diferente e desastrosamente pior! O resultado dos exemplos que citei foram vidas salvas. O resultado da obra de Che foram vidas tomadas, sangue derramado, liberdades extintas. Cordial abraço, Puggina.

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Agora, transcorridos 10 anos dessa carta, reproduzida na 2ª edição de “A tragédia da Utopia” (2019), escrevo a quem me lê aqui: mesmo diante do que acabo de expor, muitos persistirão na admiração a Che Guevara. Mas estão forçados a admitir que é na revolução, na luta de classes, na tomada do poder pelas armas e no comunismo que repousam seus apreços. E nesse caso me permitam afirmar que camisetas do Che são tão ofensivas e ameaçadoras quanto a suástica, a foice com martelo, ou a cruz flamejante da Ku Klux Klan.

Da série Grandes Lorotas: a visão de mundo marxista

Assim como existem males que vêm para o bem, há mentiras que servem para estabelecer verdades. Todo marxista (refiro-me, aqui ao ativista da causa e não àquele que lê Marilena Chauí, bebe sua vodca e põe a revolução para dormir com um ursinho de pelúcia) – todo marxista repito, tem absoluta convicção de sua superioridade intelectual e moral.

Para entender as razões da nuvem de gafanhotos que caiu sobre o trabalho humano e sobre a economia no combate à covid-19, pense no modo como vêm sendo tratados entre nós os crimes contra o patrimônio. É extremamente didático fazê-lo. Mesmo uma ligeira busca no Google evidenciará que, em diferentes pontos do país, a pandemia fez decrescer muito o número de furtos e roubos. Vale dizer, os criminosos “contra o patrimônio” respeitam mais o vírus do que a lei, que é branda e aplicada a eles com brandura por uma justiça que atenua tais delitos.

No entanto, na vida fora dos livros mal pensados, o cidadão que sai à rua é caça, pronto para ser caçado por uma multidão de ladrões mantidos soltos malgrado serem frequentadores assíduos das carceragens. Há braços da justiça recolhidos, romantizando esse tipo de ação que seria cometida por alguém buscando com as próprias mãos dar materialidade à justiça. Não importa se a sociedade se percebe como caça, acossada por caçadores à espreita, nem que os cidadãos, a cada ato desses, temam pela própria vida e pela vida dos seus. É um roubinho, um furtinho, uma saidinha de banco, que se perdoam com um pai-nosso e duas ave-marias. O diminutivo ajuda a minimizar atribuindo valor apenas ao bem alheio, tomado ou furtado. “São só bens materiais!”, alegam, num generoso desprendimento em relação ao que é dos outros…

Só que não! Essa atitude finge desconhecer que por trás de cada bem há um ser humano agredido, ameaçado, em pânico, ferido em sua dignidade. Que uma anciã foi furtada de sua aposentadoria. Que os negócios do proprietário estavam no notebook que lhe tomaram. Que a senhora de quem levaram a bolsa gastará horas e horas de diligências para recompor a própria identidade. Que com o carro levaram uma poupança de muitos anos. Pecaminosa indulgência!

assim pensam, escrevem, ensinam, convictos de manterem para com a humanidade uma relação de amor e de que o ser humano só pode ser realmente amado num estado comunista.

Não ria que eles ficam aborrecidos. A suposta beatitude impulsionada pela superioridade moral desse amor não sofre qualquer abalo ante o fato de toda experiência nesse sentido ser um flagelo de muitas dimensões. Uma eterna nuvem de gafanhotos se instala sobre a economia. Uma corte de privilegiados malfeitores se instala no poder. Uma sequência de genocídios se faz necessária para que a sociedade se submeta a seu miserável papel na história. É assim, sempre, nas muitas dimensões dessas experiências. A liberdade individual é sempre capturada na portaria do sistema. “Sua loja está sendo fechada, senhor!”.

Chegamos, então, à momentosa questão das empresas (e dos empregos); da atividade econômica e do trabalho humano. A interpretação marxista comete em relação ao enfrentamento ao novo coronavírus o mesmo equívoco, distinguindo a dimensão material da atividade econômica dos seres humanos concretos sem os quais ela sequer existe. Aqui, o Estado age como o ladrão.

É a mesma ideologia que Marx bebeu de canudinho em Proudhon, para quem a propriedade privada é o roubo. Ora, se a propriedade é apenas um bem material e é, além disso, um roubo, são supérfluos os interesses nela envolvidos.
Então, fecha tudo e vamos cuidar da mídia.

 

Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de ‘Crônicas contra o totalitarismo’; ‘Cuba, a tragédia da utopia’ e ‘Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros’. Integrante do grupo Pensar+.

 

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