Ucrânia: Por que Putin mobiliza os criminosos

Por Pascal Avot

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Foto: Cidadã russa em protesto contra a guerra na Ucrânia segura cartaz com
os dizeres
“Russos contra a guerra” e “Putin não é a Rússia”.
(Romy Arroyo Fernandez/NurPhoto via Getty Images)

 

Quem diz que Vladimir Putin restaurou a ordem na Rússia nunca pôs, com certeza, os pés nos bairros desolados e nas províncias distantes. O país é ultra-violento, ferido pelas máfias que compartilham o poder local com as forças legais. A corrupção onipresente em todos os estágios da pirâmide – consequência natural da extrema verticalidade do poder de Putin – reduz a migalhas a atividade honesta. O direito de propriedade é indefeso, exposto a todo tipo de chantagem.

O caráter notoriamente brutal e cruel do arquipélago penitenciário russo não é o bastante para domesticar uma população tornada moralmente insana por cem anos de comunismo. A taxa de resolução de crimes é extraordinariamente baixa e ninguém acredita na imparcialidade dos tribunais: o sistema inventado por Putin é anárquico e cleptocrático. Quanto mais uma nação sofreu o jugo totalitário, tanto mais tempo ela precisa para retornar ao caminho da civilização. Quanto a isso, os russos, saindo da longa noite soviética privados de toda referência histórica para o exercício do direito e da liberdade, estão ainda muito longe de ver a luz do dia.

Hoje podemos medir a catástrofe humana provocada pela mobilização parcial decretada por Putin no dia 21 de setembro. Para 300 mil homens mobilizados, quase um milhão desertaram, dentre os quais o grosso dos funcionários mais competentes do setor privado – o setor de informática comercial, por exemplo, se acha agora desfigurado. A maioria dos jovens que foram engajados a força veio da “gentinha” periférica e, evidentemente, eles não têm nenhuma pressa patriótica para despedaçar o “nazismo ucraniano”. A mobilização parcial provocou uma enorme carência em algumas zonas rurais, como nas grandes cidades. “Eu tenho a impressão que nós estamos nos tornando um país de mulheres”, lamenta uma fotógrafa moscovita. A desmasculinização da sociedade agravou ainda o nível geral de insegurança: quanto mais se envia vigilantes ao front, menos deles estão disponíveis para vigiar as empresas, as lojas e as casas.

Os socialmente próximos
No contexto da guerra em curso, o mundo das prisões se tornou um reservatório de soldados para todo tipo de missão. Estima-se em 40 mil os presos recrutados pelo exército russo em geral e pela sinistra “milícia Wagner” em particular. Acreditava-se que o contrato que lhes foi proposto era uma remição da pena em troca de servir no front. O New York Times revelou que muitos deles se beneficiaram da dita remição, por decreto presidencial, antes mesmo de seu envio aos campos de batalha. Os observadores internacionais deram o sinal de alarme: confiando o armamento pesado a criminosos embrutecidos por longos períodos de prisão nas penitenciárias russas e lhes prometendo liberdade, surge o risco de que eles se acharão com direito a tudo – como, por exemplo, pilhar, violar, massacrar, ou de fugir. Mas quem pensa que isso incomoda o Kremlin conhece mal o poder russo.

Lenin chamava os criminosos de “os socialmente próximos”. Ele entendia por isso que um delinquente, um pervertido, um assassino, um presidiário, podia ser posto a serviço da revolução desde que os retirem de suas prisões e seus bares, que lhes forneçam armas e que lhes ordenem espoliar os comerciantes, os empresários, os que têm algum tipo de renda e os religiosos. Sua palavra de ordem, “saquear os saqueadores!”, dispensava explicações. Vinguem-se dos nobres e dos burgueses, executem-os sem julgamento, tomem tudo o que eles possuem, pois isso está de acordo com o sentido da História, serve à luta de classes e permite desembaraçar os bolcheviques de seus piores inimigos: os exploradores.

Em março de 1917, Kerenski, ministro da Justiça do governo provisório, decretou uma anistia política geral. Num cartão postal da época, ele aparecia diante de uma prisão em chamas. Sua intenção era democrática, mas seu método imprudente. Uma nuvem de abutres ideológicos, atraídos pelo cheiro de podridão, do poder e do dinheiro, engrossou a massa de futuros amotinados. Lenin, ao se tornar chefe de Estado, tratou logo de recrutar tudo o que o país tinha de vagabundos sem fé nem lei, de criminosos, de soldados desmobilizados e alcoolizados e de incompetentes em busca de títulos grandiloquentes. A horda fez maravilhas. Os testemunhos dos dias decisivos de outubro descrevem uma São Petersburgo entregue ao deboche onde ninguém estava seguro, onde as adegas foram esvaziadas e onde a embriaguez chegou ao auge. As prostitutas desfilavam vestindo os mais belos vestidos das grandes damas da aristocracia, cambaleando nos braços de malandros que se tornaram príncipes. Se fornicava sem discernimento – como se faria entre os próximos de Hitler, pouco antes do cerco definitivo ao bunker. A imoralidade se impunha.

Prisioneiros de guerra
Durante a mobilização parcial, Putin teve necessidade dos “socialmente próximos”. O russo médio reluta em se arriscar por aqueles que até ontem a propaganda dizia ser seus irmãos em perigo. Não seja por isso! As prisões estão cheias de brutos que preferem traquinar sob as balas de canhão do que se deixar torturar pouco a pouco por seus carcereiros. Essencialmente, é Evguéni Prigojine quem se encarrega de os reunir. Oligarca riquíssimo muito próximo de Putin, monstruosamente cínico e de uma crueldade muitas vezes exibida (ele moeu a golpes de maça o crânio de um desertor e publicou o vídeo em redes sociais), ele é o homem ideal para transformar os condenados russos em carne de canhão. Ele tem uma retórica de honradez cheia de “coragem”, de “glória” e de “medalhas”, mas é a honra dos mafiosos: um fantasma que se desvanece ao primeiro contato com a vida real.

Na vida real, Prigojine os joga contra as primeiras linhas ucranianas para que se façam trucidar. Eles cairão como ondas, grupo após grupo, sem poder recuar. Atrás deles, os esperam os executores tchetchenos de Ramzan Kadyrov, encarregados de matar sem hesitar quem quer que se recuse a morrer. Armamento insuficiente, coletes balísticos e capacetes de má qualidade, formação inexistente, nenhuma experiência de combate real: o soldado raso do Grupo Wagner é de quantidade desprezível, e ele não tem outra escolha senão correr avante como uma galinha sem cabeça. Prigojine administra suas tropas segundo o que Stalin fez de pior no front oriental. “Só se pode sair daqui morto ou louco”, dizia um oficial alemão em Stalingrado. É igualmente verdadeiro quanto às milícias Wagner. (Para ter uma ideia mais precisa desse matadouro organizado por um bilionário, sugiro nosso artigo precedente sobre a batalha de Bakhmout).

Assim os ex-prisioneiros são, quando sobrevivem, o que é raro, prisioneiros “da carnificina”, como os chama uma testemunha da batalha de Bakhmout. E o que pensar da população russa? Ela não reage, devido ao princípio “enquanto eles mandarem para lá os bandidos, não vão mandar meu filho”. Reflexão compreensível, silêncio cúmplice, terror surdo. O suicídio forçado dos soldados Wagner não escandaliza porque, se protestassem muito, o Estado Putiniano os reprimiria, e eles preferem não saber o que acontece.

Há o boato de uma segunda mobilização parcial, para logo. Se fala em milhões de homens. Ninguém duvida da impossibilidade disso (quantos de outros milhões seria preciso mandar às ruas para apanhar os recalcitrantes, quando três quartos dos cidadãos esperavam um fim rápido dessa guerra?), mas também ninguém quer brincar com fogo. No final das contas, que se explodam os soldados Wagner, e tantos quanto forem precisos, desde que a gente fique longe dos bombardeamentos!  A Rússia é imune ao horror. Ela se afunda no desgosto de si mesma. Do outro lado da fronteira, a Ucrânia joga sua vida. Ainda há confiança mútua. Ainda existe orgulho e ainda se ri. Há, é verdade, multidões de feridos gravemente e de multilados, centenas de milhares de crianças raptadas, cidades arrasadas, há frio, há medo, mas há também liberdade. Se sofre para conservá-la.

Por uma vez
Os putinistas adoram dizer: “É muito simples! O que você pensa? Que de um lado está o bem e de outro está o mal? Mas esta é uma opinião muito maniqueísta, esta sua! Isso nunca acontece!”

Mas, pensando bem, talvez isso aconteça. O bem não é perfeito, mas ele se sente. O mal não é absoluto, mas ele inspira medo. Comparem as imagens da guerra mostrando os soldados de um lado e de outro. A diferença é abissal. Entre os ucranianos, a emoção e a esperança se vê a olho nu. Eles riem a todo momento, eles oram, têm um olhar sereno, uma determinação visível. Entre os russos, só vimos a dureza, a amargura, a ira, a indignação. Somente um espírito de má fé pode negar esse contraste. Eu os lamento.

Sim, há um bem e um mal nesta guerra. E os kamikazes involuntários da milícia Wagner, esses miseráveis alvos em movimento, essas almas tratadas como bestas-feras, esses predadores transformados em presas, sabem disso melhor do que ninguém. Um dia, os menos desumanizados testemunharão. Eles contarão como os tchetchenos abatiam seus camaradas. E o putinismo não será mais objeto de debate. Mais dia ou menos dia, inapelavelmente, a verdade acabará por sair do pântano moral de Bakhmout.

 

Publicado na Contrepoints.
Tradução: Flamarion Daia

 

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