Imagem: “Batalha de Karbala”, óleo sobre tela de Abbas Al-Musavi (entre final do séc.XIX e início do século XX). Museu do Brooklyn, Nova Iorque.
Respostas Cristãs Pré-modernas ao Islã e aos Muçulmanos
Nota de Daniel Pipes:
Este estudo foi divulgado como “a ser publicado” em meu livro de 1983 In the Path of God: Islam and Political Power (New York: Basic), p. 348, nota ao pé da página 47. Levou 38 anos para ser concluído, mas aqui está, com um subtítulo diferente. Esta é a primeira parte do artigo, a segunda será sobre era moderna.
Em uma conversa que aparentemente teve lugar em 13 de julho no ano de 634, só dois anos após a morte de Maomé, um ancião foi indagado sobre o que ele achava do “profeta que apareceu entre os sarracenos?” Ele respondeu que Maomé “é um impostor. Os profetas aparecem com espadas e carruagens?” Outro concordou, observando: “não há nenhuma revelação do assim chamado profeta, somente banho de sangue.” Meses mais tarde, em um sermão na véspera de Natal em 634, o patriarca de Jerusalém se referiu aos muçulmanos como “lodo dos sarracenos ateus que aterrorizam com massacres e destruição.”[1]
E assim foi, a reação cristã frente aos muçulmanos começou mal, justamente quando as paixões religiosas estavam nas alturas e a receptividade a novas influências no seu ponto mais baixo. Esta reação hostil então permaneceu, a grosso modo, estática durante o próximo milênio, de 634 a 1700. Só mesmo nos últimos três séculos as coisas começaram a evoluir, em uma mistura da velha hostilidade com algo assustadoramente diferente.
Os parágrafos a seguir esboçam as reações cristãs frente ao Islã e aos muçulmanos no espaço de um milênio. O porquê da Europa [2] ter uma visão negativa dos muçulmanos durante tanto tempo. A parte 2 abordará o porquê dessa mudança parcial e a situação atual.
Militar — Fora da Europa:
Dois desafios, militar e religioso, explicam a inicial e eterna animosidade da Europa em relação aos muçulmanos. Os muçulmanos não só conquistaram parte significativa da cristandade antes de 1700 ameaçando qualquer resistência ao seu controle, como também apresentaram um singular desafio religioso. Esta mistura lhes conferiu um papel sem-par.
O que tem sido chamado de “a fronteira mais antiga do mundo”[3] começou a ser delineada com as vitórias militares dos muçulmanos em cima dos cristãos. Dois anos depois da morte de Maomé em 632, os muçulmanos começaram a atacar o território bizantino ao norte da Arábia. Meros 82 anos depois, eles conquistaram terras que se estendiam desde os Pireneus até a Ásia Central. Os cristãos formavam a maioria da população de inúmeras regiões que ficaram sob controle muçulmano, como Síria, Egito, Núbia, Norte da África e Espanha, bem como muitos cristãos que viviam no Iraque e no Irã, em menos de um século, praticamente toda a cristandade fora da Europa e Anatólia, de uma hora para outra, foi incorporada no que os muçulmanos chamam de Dar al-Islam (territórios controlados por dirigentes muçulmanos).
Salvo a primeira e última exceção, as poucas regiões fora da Europa que sobreviveram à inicial e violenta ofensiva arábica acabaram caindo em mãos muçulmanas. Constantinopla, capital de Bizâncio (antigo nome de Istambul) porta de entrada para a Europa, resistiu aos ataques muçulmanos durante oito séculos, começando com a expedição naval muçulmana em 654. No final acabou capitulando frente aos turcos otomanos em 29 de maio de 1453, um dos dias mais negros e mais marcantes da história cristã. Bizâncio aguentou firme na Anatólia por mais de quatro séculos, de 653 a 1071, quando acabou derrotada pelos turcos, que ao fim e ao cabo, eliminaram o último reino grego em 1461. Os armênios sucumbiram ao domínio muçulmano em 666 e permaneceram subjugados desde então, salvo um longo período de 885 a 1375. Analogamente, os georgianos caíram nas mãos dos muçulmanos em 654, gozaram de um ressurgimento medieval e voltaram ao controle muçulmano no século XVI. Muitos cristãos maronitas que viviam nas planícies da Síria fugiram do governo muçulmano tomando a rota das montanhas libanesas, lá mantiveram a independência na maior parte da era islâmica, mas acabaram caindo diante dos otomanos. Dongola no Sudão durou até cerca de 1350 e a vizinha Alwa até 1504.
Apenas o reino cristão da Etiópia resistiu ao avanço muçulmano em busca de território, território singular, secular e cristão, fora da Europa a sobreviver. O reino também teria sucumbido à jihad (guerra muçulmana contra os não muçulmanos) não fosse pelo o que a historiadora Elaine Sanceau chama de “quase milagrosa” intervenção de um pequeno contingente português que por um triz salvou a pátria.[4] Foi realmente quase milagrosa, sendo que a invasão muçulmana de 1530-1531, liderada por Ahmad Gran teria dizimado o secular reino cristão não fossem 350 artilheiros e fuzileiros portugueses que em 1541 juntamente com duzentos etíopes, triunfaram contra 15 mil arqueiros, 1.500 cavaleiros e 200 soldados turcos equipados com arcabuzes.
Estas terras cristãs foram perdidas quando o Levante e o Norte da África, não a Europa, formavam o centro nevrálgico do cristianismo, compreendendo suas maiores populações, instituições mais importantes e centros culturais. O domínio muçulmano destruiu a preeminência do cristianismo oriental e dizimou o poder das igrejas. Quatro em cada cinco patriarcados (Alexandria, Antioquia, Constantinopla, Jerusalém) perderam muito de suas autonomias e influência quando sob o comando muçulmano. Norman Daniel escreve que os europeus ocidentais viam a cristandade como “uma única nação, que com a ascensão do Islã foi roubada de um terço das suas melhores províncias,”[5] e mais dali para a frente. A Europa estava órfã.
Militar — Na Europa:
Mais perto da Europa, toda e qualquer ilha de maior importância no Mar Mediterrâneo caiu na esfera do domínio muçulmano. A duração variou de alguns meses na Sardenha a seis séculos em Chipre. Reinaram nas Ilhas Baleares de 903 a 1228 e atacaram as ilhas centenas de anos antes e depois destas datas. Governaram na Córsega de 814 até o início do século X, Creta de 826 a 961 e de 1669 a 1897, Chipre de 649 a 965 e de 1573 a 1878, Malta de 869 a 1091, breve passagem na Ilha de Rhodes de 653 a 658 e 717 a 718 e depois de 1522 a 1912, Sardenha de 1015 a 1016 e Sicília de 827 (embora somente algumas partes da ilha estivessem sob controle muçulmano antes de 965) a 1091.
Quanto à região continental da Europa, torrentes de invasores a atacaram nos primórdios e nos períodos medievais iniciais. As incursões de povos não muçulmanos como celtas, godos, magiares e vikings terminaram em 955, com a única exceção da invasão mongólica na Europa Oriental entre1240 e1241. Para contrastar, os muçulmanos continuaram atacando por praticamente mais 800 anos até 1700. De modo que, fora os mongóis (muitos dos quais se converteram ao Islã, eles também mais ou menos se enquadram no padrão), os ataques contra a Europa após 955 vieram predominantemente dos muçulmanos.
A jihad veio em duas ondas principais: a campanha arábica no ocidente do século VIII ao século X e a turca no oriente do século XIV ao século XVII. (As duas eras de controle muçulmano em Creta, Chipre e Rhodes refletem a dupla ofensiva.)
Na Europa continental, via de regra, os cristãos capitulavam ao ataque muçulmano. Os árabes conquistaram a Espanha entre 711 e 716, lá destruíram o reino visigodo cristão, avançaram para a Gália e em 732 chegaram à Poitiers, 322 km a sudoeste de Paris. Edward Gibbon sabidamente especulava que, não fosse pela vitória dos francos em Poitiers, talvez a leitura do Alcorão seria hoje lecionada nas escolas de Oxford e seus alunos poderiam demonstrar a um povo circuncidado a santidade e a revelação de Maomé.[6]
Muito embora os árabes não tivessem conseguido estabelecer uma base sólida nos arredores da Ibéria, seus ataques se tornaram fato consumado em muitas partes da Europa nos séculos IX e X. Uma expedição digna de nota em 846 levou os invasores muçulmanos até os subúrbios de Roma onde atacaram a igreja papal de São Pedro. Depois desta incursão foi construída uma muralha para proteger o papa, trabalho realizado primordialmente por prisioneiros muçulmanos, o que levou à criação de um estado Vaticano independente. Certa vez a Itália foi o endereço de um emirado muçulmano independente, embora breve (de 853 a 871) e pequeno (em Bari, próximo ao calcanhar da Itália), por assim dizer.
Invasores árabes capturaram a cidade de Fraxinetum (hoje Garde-Frainet) perto de São Tropez na Côte d’Azur em 889 que ficou em suas mãos durante quase meio século. De lá eles avançaram para Rhône Valley, chegando à Suíça. Certa vez em 954, muçulmanos de Fraxinetum saquearam o monastério de São Gallen junto ao Lago Constance hoje na fronteira da Suíça com a Alemanha. Nos anos de 920 os muçulmanos controlavam muitas das passagens que cortavam os Alpes.
A presença árabe se estendia do Oriente até Atenas onde vivia uma colônia de muçulmanos ao redor do ano 1000. Eles construíram uma mesquita no local de um templo milenar, o Asclepium, e obraram na cidade como trabalhadores braçais.[7] Estas invasões ainda são celebradas com o nome dos lugares, assim: Pontresina, uma cidade perto de São Moritz na Suíça, deriva seu nome do latim “Pons Saracenorum,” Ponte dos Sarracenos, termo medieval denotando árabes muçulmanos.[8] Por mais apavorantes e poderosas que possam estar incutidas nas memórias dos residentes locais, estas incursões não tinham condições de durar muito, a bem da verdade, durante muitos séculos, após terem se apoderado da Espanha, os muçulmanos não fizeram avanços duradouros na Europa.
A segunda onda de conquistas começou em 1356 quando os turcos otomanos cruzaram o estreito de Bósforo e capturaram Gallipoli dos bizantinos. Nos séculos que se seguiram, os otomanos capturaram a Grécia e praticamente toda a região dos Bálcãs, fato, de novo, celebrado com o nome dos lugares: Bálcãs, por exemplo, significa montanha em turco. Muitos povos cristãos, incluindo gregos, sérvios e húngaros, caíram no domínio turco. O avanço otomano atingiu o ápice quando dos dois cercos de Viena em 1529 e 1683.
Parte da campanha para libertar a Grécia do jugo otomano integrava uma coalizão de exércitos formados por mercenários que bombardeou o Partenon, usado pelos turcos como armazém para estocagem de armas e munições. Em setembro de 1687 um petardo atingiu em cheio o depósito e o fogo que se seguiu deixou a estrutura nas conhecidas ruínas de hoje. (O impacto da explosão também teve o efeito de forçar a rendição dos turcos.)
O poder dos turcos se estendia para mais além dos Bálcãs: ao norte a região da Podólia ficou nas mãos dos turcos de 672 a 1699, ao leste uma dinastia muçulmana independente empunhava o cedro na Crimeia de 1475 à 1774 e no oeste eles governaram, embora momentaneamente, Otranto na Itália entre 1480 e 1481. O mando dos muçulmanos nos mares tinha condições de chegar a praticamente qualquer costa. Em um caso extremo, duas naves de piratas barbarescos, uma do Marrocos, outra da Argélia, aportaram na Islândia em 1627 num incidente conhecido como Tyrkjaránið e capturaram centenas de nativos para vendê-los como escravos na volta para casa. Muito embora nenhum efeito de grande importância tenha resultado desses avanços, as consequências poderiam ter sido bem diferentes. Considere a ofensiva italiana, abandonada por conta de contenções otomanas internas, conforme destaca Bernard Lewis, poderia resultar em consequências de grande envergadura.
A facilidade com que poucos anos depois, entre 1494 e 1495, os franceses conquistaram os estados italianos, um após o outro, quase sem resistência, sugere que se os turcos tivessem persistido segundo seus planos, eles teriam conquistado a maior parte, senão toda a Itália sem muita dificuldade. A conquista da Itália pelos turcos em 1480, quando a Renascença ainda era incipiente, teria transformado a história do mundo.[9]
Olhando para o todo da Europa continental, os muçulmanos teriam, em certo momento, controlado a maioria ou todos os modernos países europeus: Portugal, Espanha, Hungria, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Sérvia, Montenegro, Macedônia do Norte, Kosovo, Albânia, Grécia, Bulgária, Romênia, Bielorrússia e Moldávia. E não para por aí, eles controlavam partes da França, Suíça, Itália, Áustria, Polônia, Lituânia, Eslováquia, Eslovênia e Ucrânia.
Nesta difusa presença muçulmana que se estendeu por 1200 anos, os cristãos conquistaram a independência um sem-número de vezes das mãos dos muçulmanos, da Reconquista espanhola iniciada em 722 se estendendo até a guerra de independência da Albânia em 1912. Não é de se admirar que os muçulmanos eram vistos por muitos como o inimigo nº 1, formando a partir daí identidades nacionais em oposição a eles em grande parte do sul da Europa, principalmente em Portugal, Espanha, Sicília, Sérvia, Grécia, Bulgária e Romênia. Árabes, Sarracenos, Mouros, os terríveis turcos, hordas de tártaros e piratas barbarescos serviram de protagonistas para catalisar a coragem cristã. Santos (sobretudo o Rei Louis IX da França) conquistaram sua reputação enfrentando os muçulmanos.
Os muçulmanos também tiveram seu papel na literatura, do medieval Chanson de Roland e Cantar de mio Cid ao início do período moderno com Don Quixote e Os Lusíadas ao moderno Le Camp des Saints e Soumission.[10] O hino nacional de Andorra, adotado em 1921, começa com as seguintes palavras: “o grande Charlemagne, meu pai, me libertou dos sarracenos.”
As hostilidades com os muçulmanos aqueceram a tecnologia militar. Senão vejamos, Galileo desenvolveu o telescópio não só para provar a teoria heliocêntrica de Copérnico, mas também como “óculo de alcance” para que a inteligência pudesse usar para visualizar as embarcações otomanas duas horas antes do que seria possível a olho nu.[11] Estar cercado por muçulmanos inspirou descobertas navais, começando com as do Infante Dom Henrique, o Navegador, de Portugal (1394-1460).
Uma membrana de comunidades muçulmanas da Espanha proliferando pelo Norte da África ao Levante, à Ásia Central e Sibéria, separavam a Europa medieval do restante do hemisfério oriental. Ficar cercado por muçulmanos exacerbou ainda mais as concepções cristãs. Poucos europeus deram um jeito de passar pela barreira dos muçulmanos, seus relatos vindos da África e Ásia não muçulmana, como por exemplo os de Marco Polo, eram recebidos com desconfiança.
Circundados por muçulmanos e “preocupados com problemas imediatos trazidos pela ameaça do Islã, a Europa perdeu quase que por completo qualquer ligação com o Oriente (não muçulmano) como terra existente,” escreve o historiador Donald Lach.[12] Os cristãos sequer tinham consciência do quão limitado era o seu horizonte: “o Islã não só obrigava os cristãos a viverem numa minúscula bolha… eles também fizeram com que os cristãos sentissem que tal existência era totalmente normal,” observa John Meyendorff.[13] Fora isso, frequentemente eles se sentiam isolados e desesperançosos. Conforme Roger Bacon escreveu no final dos anos de 1260, “há poucos cristãos, toda a extensão do mundo é ocupada por incrédulos e não há ninguém para mostrar-lhes a verdade.”[14] Os europeus mantiveram esta sensação claustrofóbica de estarem cercados por inimigos até mais ou menos o ano de 1450.
Por cerca de mil anos, do ataque inicial à Constantinopla em 654 ao segundo ataque a Viena in 1683, os muçulmanos representaram o desafio externo mais consistente à Europa, fazendo com que os europeus ficassem extremamente temerosos por mais de um milênio sobre o poderio muçulmano. O desafio religioso islâmico então reforçou esta sensação de ameaça.
Religião – Uma Religião Falsa, Maomé
A religião islâmica não preocupava os europeus menos do que seus exércitos. O Islã apresentava um desafio sem-par ao cristianismo: a religião era vista como falsa. O objetivo era complementar o Evangelho e substituí-lo. O Islã apresentava uma alternativa de modo de vida atraente e viável. E de fato atraiu mais cristãos convertidos do que qualquer outra religião. O proeminente administrador escocês e estudioso do Islã na Índia, Sir William Muir, escreveu em 1845 que o Islã era “o único antagonista escancarado e de peso do cristianismo.”[15] Wilfred Cantwell Smith ressaltou em 1957: ” o profeta organizou e lançou o único sério desafio com o qual a civilização ocidental se deparou em todo o curso de sua história, isto até a chegada de Karl Marx e a ascensão do comunismo.”[16]
Durante todo o período medieval, os cristãos não viam o Islã só como uma religião falsa como também uma distorção da mensagem cristã, uma perversão da sua própria fé. São João Damasceno (m. cd. 749 – na imagem ao lado) considerava a “superstição dos ismaelitas” uma heresia cristã.[17] Neste estado de espírito, os cristãos medievais imaginavam que os muçulmanos veneravam uma trindade ímpia: Mahon (ou seja: Maomé), Termagante e Apolo. Eles viam o Islã como a personificação do mal, como uma inteligente e monstruosa mistura de doutrinas traçadas com o objetivo de explorar as fraquezas humanas. Em uma articulação concisa, Norman Daniel explica como o Islã representava “uma tirania sexualmente corrupta baseada em falsos ensinamentos.”[18]
Acusações sobre manipulação islâmica da religião, poder e sexo se tornaram parte do repertório padrão europeu, mostrando “impressionante tenacidade,” aparecendo repetidamente, sem trégua, de diversas formas e com uma infinidade de diversidades ao longo da Idade Média.[19] Segundo as palavras de Richard Chenevix (1774-1830), autor irlandês de uma obra de dois volumes sobre caráter nacional, explicou que o Islã se entregou a todo e qualquer impulso:
para acomodar os diversos traços que fazem parte da Arabia Felix, Arabia Petrea e Arabia Deserta, a religião islâmica tem que ser tão diversificada quanto estes distritos. Feroz para um e sensual para outro, fútil, suntuosa, empolgada, selvagem para todos. Para o ladrão, ela deve incutir o saque contra os incrédulos, para o guerreiro ela deve pregar conquista e extermínio, para o preguiçoso, ela tem que permitir os prazeres de todos os sentidos, para todos os devotos ela deve prometer uma eternidade voluptuosa, desde que eles salvaguardem o profeta.[20]
A rejeição do Islã como fé válida gira em torno da pessoa do profeta islâmico Maomé. Annemarie Schimmel observa que “mais do que qualquer outra figura histórica, foi Maomé que incutiu medo, aversão e ódio no mundo medieval cristão.”[21] Os cristãos entendiam que Maomé era mais do que um ser humano, porquanto como poderia um mero mortal arquitetar maneiras tão sagazes de arregimentar seguidores e fazê-los acreditarem em evidentes falsidades? A mensagem de Maomé representava enganação e violência, em particular, sua vida (as inúmeras esposas, a validação da poligamia e do concubinato) levaram à acusação de licenciosidade sexual. Daniel observa que Maomé foi espinafrado por conta da “violência e brutalidade com que impôs a sua religião, a lascívia e o descaso com o qual subornava os seguidores que ele não conseguia convencer e finalmente sua evidente humanidade, que sempre se fazia necessário provar, muito embora nenhum muçulmano a negasse, nem desejasse negá-la.”[22]
Tal estado de ânimo em relação a Maomé justificava a rejeição cristã de tudo o que o Islã representava. Se Maomé era um impostor, então como os muçulmanos poderiam ser sinceros? Os cristãos expressavam este ceticismo em sua terminologia. “Mahomet” significava ídolo no inglês do século XVI e “Mahometry” significava idolatria.[23]
Analogamente, os cristãos europeus mostravam seu desrespeito ao Islã atribuindo nomes étnicos em vez de religiosos aos seguidores de Maomé. Conforme observa Bernard Lewis: “na Grécia, os muçulmanos poderiam ser árabes, persas, agarenos, até assírios, na Rússia, eles eram tártaros, na Espanha, mouros, na maior parte da Europa, turcos e tanto na cristandade oriental quanto na Ocidental eles eram normalmente chamados de sarracenos, nome de origem obscura, mas sem dúvida de significado étnico.”[24]
Religiosidade – Conversão
Em conformidade com os povos que trouxeram uma fé civilizada juntamente com uma cultura atraente, os muçulmanos se diferenciavam de quase todos os demais invasores da Europa que eram membros de uma determinada tribo focada no saque. Os muçulmanos fizeram mais do que destruir propriedades, eles ameaçaram a continuidade da predominância do cristianismo.
A maioria dos cristãos que viviam em Dar al-Islam (território sob controle muçulmano) deram o passo irreversível da conversão ao Islã, fé de seus senhores políticos, embora a índices bastante variáveis. Os cristãos praticamente sumiram da Arábia, Norte da África e da maior parte da Anatólia, aguentando firme como pequenas minorias em outras regiões do Oriente Médio. Os coptas formam somente um décimo da população do Egito e há meros vestígios dos jacobitas, amalequitas, nestorianos e de comunidades ortodoxas que sobreviveram no Crescente Fértil e no Irã. A mistura de solidariedade política e terras inacessíveis permitiram aos armênios e libaneses permanecerem predominantemente cristãos.
O número de cristãos no Oriente Médio gira atualmente em torno de 15 milhões, a maioria se concentra no Egito, Líbano, Chipre e Síria, constituindo menos de 5% da população de quase 370 milhões.
Na Europa as conversões cristãs ao Islã ocorreram com maior frequência na Ibéria, em algumas ilhas do Mediterrâneo e em partes dos Bálcãs. A Espanha e a Sicília até se tornaram importantes centros medievais da cultura muçulmana. Houve casos em que a reconquista cristã tinha condições de forçar os muçulmanos a abandonarem totalmente uma determinada região, como a Espanha e a maioria das ilhas mais importantes do Mediterrâneo, menos Chipre (onde moram atualmente cerca de 150 mil turcos autóctones).[25]
O jugo muçulmano pôde ser e foi revertido, porém muito menos do que as conversões ao Islã, dado que um número insignificante de muçulmanos mudam de religião e tal mudança só ocorre em casos individuais e isoladamente, os dois casos mais importantes de conversões de comunidades, as de tártaros no século XVII e as de sunitas no Líbano de 1700, foram realizadas sob pressão e com a expetativa de vantagens imediatas aos convertidos. Hoje a população muçulmana autóctone (isto é, sem a imigração para a Europa do século passado ou as recentes conversões de nativos para o Islã) de 15 milhões de pessoas na Europa, a maioria se encontra nos Bálcãs e na Trácia turca. A maior e mais densa concentração (cerca de 10 milhões) se encontra em Istambul e em menor número na Albânia, Bósnia e Herzegovina, Kosovo e Montenegro.
Conclusão
O encontro com o Islã ocorreu cerca de 800 anos antes do contato com japoneses ou chineses, hindus ou budistas, africanos ou americanos. Na realidade, a singular natureza da hostilidade dos europeus na maneira de enxergar os muçulmanos se tornou evidente a partir do início dos anos 1400 com o advento das explorações europeias, quando os cristãos reagiram de modo muito mais favorável aos não muçulmanos que eles encontraram, sendo que os muçulmanos se sobressaíram cada vez com mais clareza como o inimigo permanente.
Sendo a Europa o único rival medieval persistente, os muçulmanos evocaram poderosas respostas que afetaram todas as relações ocidentais com o mundo exterior. Parecia que o planeta tinha duas grandes vertentes, uma cristã, outra muçulmana, que representavam o eu e o outro, o bom e o maligno. O historiador R. W. Southern considera “a existência do Islã… o problema de maior alcance da cristandade medieval. Era um problema em toda e qualquer esfera da experiência humana”, prática, teológica e histórica.[26] O fator muçulmano influenciou o senso medieval cristão de si mesmo, da inovação, viagens das descobertas e visões do mundo exterior.
Notas:
[1] Walter Emil Kaegi, Jr., “Initial Byzantine Reactions to the Arab Conquest,” Church History, junho de 1969, pp. 139-49.
[2] Entende-se aqui a Europa como península a oeste do meridiano a cerca de 30º E além das ilhas vizinhas, excluindo portanto a maior parte da Rússia e da Turquia, excetuando-se Istambul. Esta exposição foca especificamente nos cristãos da Europa pré-moderna, subsequentemente ampliando o território, de maneira geral, para incluir o Ocidente como um todo.
[3] Gai Eaton, Islam and the Destiny of Man (State Univ. of N.Y. Press and the Islamic Texts Society, 1985), p. 2. Esta análise aceita a narrativa convencional sobre as origens do Islã.
[4] Elaine Sanceau, The Land of Prester John: A Chronicle of Portuguese Exploration (New York: Alfred A. Knopf, 1944), p. 136.
[5] Norman Daniel, Islam and the West: The Making of an Image (Edinburgh: The University Press, 1958), p. 109.
[6] Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, vol. 3 (London: Everyman’s Library, 1993), p. 469.
[7] Kenneth M. Setton, “On the Raids of the Moslems in the Aegean in the Ninth and Tenth Centuries and Their Alleged Occupation of Athens,” American Journal of Archaeology, 58 (1954): 319.
[8] Manfred W. Wenner, “The Arab/Muslim Presence in Medieval Central Europe,” International Journal of Middle East Studies, agosto de 1980, p. 66 (com a lista de outros nomes).
[9] Bernard Lewis, The Muslim Discovery of Europe (New York and London: WW Norton, 2001), p. 32.
[10] Daniel Pipes, “Who Will Write France’s Future?” The Washington Times, 7 de junho de 2016.
[11] Dankwart A. Rustow, “The Military Legacy,” in L. Carl Brown, ed., Imperial Legacy: The Ottoman Imprint on the Balkans and the Middle East (New York: Columbia University Press, 1996), pp. 252-53.
[12] Donald F. Lach, Asia in the Making of Europe, vol. 1, bk. 1 (Chicago: University of Chicago Press, 1965), p. 22.
[13] John Meyendorff, “Byzantine Views of Islam,” Dumbarton Oaks Papers, 18 (1964): 131-32.
[14] Roger Bacon, Baconiis Opens Maius Pars Septima seu Moralis Philosophia, Eugenia Massa, ed. (Turici: In aedibus Thesauri mundi, 1953), 3:122; citado em R. W. Southern, Western Views of Islam in the Middle Ages (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1962), p. 57.
[15] Sir William Muir, The Mohammedan Controversy and Other Indian Articles (Edinburgh: T. and T. Clark, 1897), p. 2.
[16] Wilfred Cantwell Smith, Islam in Modern History (Princeton, N.J. and Oxford: Princeton University Press and Oxford University Press, 1957), p. 105.
[17] pesquisas modernas revisaram esta interpretação: consulte Robert Spencer, Did Muhammad Exist? An Inquiry into Islam’s Obscure Origins (Wilmington, Del.: ISI Books, 2012).
[18] Norman Daniel, Islam, Europe and Empire (Edinburgh: Edinburgh University Press, 1966), p. 6.
[19] Southern, Western Views of Islam, p. 28.
[20] Richard Chenevix, An Essay upon National Character (London: James Duncan, 1832), vol. 1, p. 97.
[21] Annemarie Schimmel, And Muhammad Is His Messenger: The Veneration of the Prophet in Islamic Piety (Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1985), p. 3.
[22] Daniel, Islam and the West, p. 107.
[23] Oxford English Dictionary, s.v. “Mahomet” and “Mahometry.”
[24] Bernard Lewis, “Gibbon on Muhammad,” Daedalus, Summer 1976, p. 89.
[25] Muçulmanos habitavam a Ilha de Creta até 1923, quando, ao amparo dos termos do Tratado de Lausanne, eles tiveram que mudar para a Turquia.
[26] Southern, Western Views on Islam, pp. 2-3.
Daniel Pipes (@DanielPipes) é o presidente do Middle East Forum e editor do Middle East Quarterly, onde o presente artigo foi publicado originalmente.
Tradução: Joseph Skilnik
Excelente artigo! Uma única observação: a tradução para Rhone Valley (no parágrafo logo acima da imagem de St. Galen) é Vale do Ródano;