O sobrevivente do Gulag que viveu para contá-lo

Por Jorge Soley

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Alexander Soljenítsin passou para a história como o gigante que enfrentou o poderoso Império Soviético tendo como únicas armas a verdade e uma inquebrantável dignidade, conseguindo derrotá-lo; o escritor dissidente que ganhou o Prêmio Nobel; o sobrevivente do Gulag que vive para contá-lo e deixá-lo em evidência à intelectualidade ocidental sempre tão inclinada a coquetear com o tirano de plantão; o insubornável defensor da liberdade espiritual do homem diante de todo totalitarismo. Uma figura de talhe épico, dessas que escasseiam na atualidade.

Tudo isso é verdade… e, no entanto, poderia perfeitamente não ter sido assim. É o que compreendermos ao ler a biografia de nosso homem que, depois de várias entrevistas pessoais, Joseph Pearce escreveu. (A chave para que o então bastante entrado em anos e bastante arisco escritor russo aceitasse falar com Pearce foi seu comum entusiasmo com a obra de G. K. Chesterton). A vida de Soljenítsin acabou bem: a URSS se desmoronou e ele pode regressar a sua amada terra russa convertido em consciência moral de um país desorientado que ainda está buscando superar a profunda ferida deixada pelo comunismo. Mas, como pode concluir quem conhece as fases de sua vida, se acabou bem é por uma série de milagres que anularam o que teria sido normal: sua morte prematura e sua condenação ao mundo do esquecimento. Como tantos compatriotas sepultados no inferno soviético do Gulag (esse do qual agora alguns parecem ter nostalgia em nosso país) e dos quais a duras penas conservamos apenas seus nomes.

Soljenítsin, apesar dos esforços de sua mãe para transmitir-lhe a fé cristã ortodoxa, logo passou a ser um comunista exemplar, um filho da Revolução Bolchevique. Nessa luta entre o que lhe ensinavam em casa e o que lhe inculcavam no colégio, a vitória se inclinou para o Estado contra a família. Soljenítsin adolescente foi um triunfo do sistema comunista de doutrinamento, da propaganda e da mitologia bolchevique, era um homem novo, o filho da Revolução. Um herdeiro entusiasta de um tempo terrível, do tempo no qual, como explica Pearce,

“Pavlik Morozov se converteu em um herói de um dia para outro por denunciar seu pai à polícia secreta e foi apresentado como exemplo a ser imitado pela juventude soviética. ( ver https://midiasemmascara.net/as-tres-vidas-de-pavlik-morozov/)”.

Aquilo, não obstante, não consegui penetrar no mais profundo de sua alma, ali onde sempre existiu um canto que se negava a deixar de ser livre. Talvez o momento chave foi quando, enquanto cursava o terceiro curso da Universidade, ofereceram-lhe um cargo na NKVD, a polícia secreta soviética. Uma oferta que, racionalmente, deveria ter aceitado sem hesitar. Não o fez. Como anos depois escreveria,

“em teu interior há um sentimento de aversão, de repugnância. Faz com que me sinta enfermo. Fazeis o que quiserdes comigo; eu não quero tomar parte disso.”

O que viu servindo no exército vermelho durante a Segunda Grande Guerra, os atos bárbaros, as violações de mulheres até a morte, abalou suas convicções comunistas, assaltadas agora por um mar de dúvidas. Um comentário não suficientemente respeitoso numa carta que foi interceptada o fez cair em desgraça. De um dia para outro o jovem herói bolchevique se convertia em um traidor, um agente imperialista condenado a cumprir pena em um dos campos de concentração do entremeado que depois imortalizaria com o nome de Arquipélago Gulag.

Ali deveria ter acabado a vida de Soljenítsin, mais um entre os milhões de vítimas anônimas do comunismo. Mas, ao contrário, foi ali que ele reencontrou a fé e conheceu em toda profundidade a maldade do regime soviético, encontrando assim o que será a missão de sua vida, a denúncia desse regime aniquilador de almas e corpos. Foi ali onde descobriu que

“podemos afirmar nossa liberdade interior inclusive em condições externas de falta de liberdade. Nesse ambiente não perdermos a possibilidade de avançar até metas morais.”

Depois de oito anos de Gulag, Soljenítsin foi enviado ao exílio, onde poderia muito ter terminado os seus dias, encurtados por um câncer que não foi tratado até passado um tempo e ao qual, mais uma vez de modo milagroso, sobreviverá. Quando chega a relativa “liberalização” de Kruschev, Soljenítsin se encontra ainda desconhecido mas muito vivo e com a responsabilidade, com a necessidade quase fisiológica de dar a conhecer a grande mentira sobre a qual se tinha construído o comunismo na Rússia. Pouco importava se sua voz chegava a dez pessoas ou a dez milhões, Alexander Soljenítsin era uma alma ardendo no fogo da verdade que já não iria dobrar-se ante nada, por mais poderoso que fosse.

“Aquele a quem se priva de toda força material acabará triunfando sempre através do sacrifício,”

escreveria depois, e ele havia passado pelo sacrifício extremo e vivia nele.

Algumas de suas obras vêm a ser publicadas (ainda que às vezes mutiladas), como parte dos gestos de abertura do momento, outras se distribuiriam clandestinamente através da samizdat. Entre as primeiras, “A Casa de Matriona”, através da qual, segundo o historiador Grigori Pomerants,

“um milhão de pessoas, se não mais, deram seu primeiro passo até a luz com Soljenítsin.”

Entre as segundas, sua “Carta de Quaresma”, dirigida ao clero russo mas que se espalhou como uma pólvora e atraiu um enorme interesse, inclusive no Ocidente, provocando a ira da KGB. Já não se podia ignorar a Soljenítsin que, agora sim, se tinha convertido em um perigoso inimigo do regime. Foi então que muitos amigos, temerosos, lhe deram as costas, mas como ele mesmo relata,

“ainda que muita gente tenha me condenado, nunca lamentei ter dado aquele passo: se nossos pais espirituais não são os primeiros a dar o exemplo de liberdade espiritual em relação à mentira, onde poderemos ir em busca de um bom exemplo?”

O ano de 1970, pouco tempo depois do escândalo internacional que significou sua expulsão da União de Escritores, o que o condenava ao silêncio, Soljenítsin recebeu o Nobel de literatura, um prêmio que não foi receber na Suécia mas cujo discurso de aceitação se converteu em uma nova e poderosa arma contra o totalitarismo comunista. A publicação do primeiro volume de Arquipélago Gulag em Paris, em dezembro de 1973, provocou a fúria das autoridades soviéticas. Estouraram os ataques, as calúnias, as ameaças, mas Soljenítsin já tinha passado pelo inferno e não iria agora ceder. As ondas de perseguição que rompiam contra sua pessoa e que aparentemente iam encontrar ao indefeso escritor passavam e não faziam mais que engrandecer sua figura. Alguns, poucos mas valentes, saíram em sua defesa. Sakharov na União Soviética, Saul Bellow, nos Estados Unidos. O que umas décadas antes teria terminado com seu assassinato resultou na mera expulsão do país. Quem pensava que assim se livrava dele estava muito equivocado: o testemunho de Soljenítsin chegaria a partir de então com mais força e ao mundo inteiro, a princípio depreciado pelos comunistas e seus companheiros de viagem, mas finalmente se impondo como só pode fazer o verdadeiro.

Já no Ocidente, Soljenítsin continuará sendo o incorruptível profeta que não duvidará da hora de dizer o que vê e o que pensa, apesar disso poder ser incomodo ou de que alguns o possam acusar de ingratidão. Seguirá sendo sempre a voz que denuncia a maldade intrínseca do comunismo e apoiará aos que, como Reagan, não aceitavam conviver com esse mal, ansiavam derrotá-lo e enviá-lo a lixeira da história. Mas ao mesmo tempo denunciará também tudo aquilo que via como corrupto no Ocidente. Seu discurso em Harvard, em 1978, denunciava vigorosamente o antropocentrismo que insistia obsessivamente nos direitos humanos esquecendo sua contrapartida, as obrigações humanas. Richard Pipes, que estava entre os ouvintes, explicou seu impacto assim:

“Tínhamos escutado um demolidor ataque contra o Ocidente contemporâneo, por sua falta de coragem, por seus excessos, por seu autoengano”.

George Will comparou Soljenítsin a um profeta do Antigo Testamento,

“que não dava sossego e que provocava uma reação que deixava a mostra a complacência da sociedade”.

O tempo não deixou de engrandecer a Soljenítsin, seu testemunho pessoal e, sobretudo, sua obra, continuamente reeditada e que permanece plena de sentido para nossos tempos. Os males que Soljenítsin via no Ocidente não deixaram de se estender, qual metástase mortal, e aqueles que, esquecendo ou, pior ainda, se recusando a admitir, propõem mais uma vez a ideologia comunista como esperança para a humanidade, voltam a ocupar tribunas e a enganar pobres incautos. É por isso que precisamos voltar a escutar a voz de Alexander Soljenítsin, ler (ou reler, ou convencer a ler) suas obras, além dessa outra obra única que constitui sua vida; essa deve ser uma das tarefas a se empreender com urgência.

 

Tradução: Flamarion Daia
Publicado no Libertad Digital.

 

2 Comentários
  1. B. Dutra Diz

    A frase sadio de alma corpo e mente mostra bem o conjunto do ser humano. A alma em primeiro, no comando, o corpo do qual faz parte a mente através da atividade intelectiva, que se alcançar a supremacia, anula a alma e forja um mundo áspero sem coração como o mundo em que ele viveu e cuja alma não podia reconhecer como humano.

  2. […] Sobre o autor, leia também O sobrevivente do Gulag que viveu para contá-lo. […]

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