Foto: Godfrey Ali Shikagham e Lawrence Duna Dacighir, cristãos que trabalhavam nas frentes de ajuda humanitária na Nigéria, momentos antes de serem executados pelos terroristas islâmicos do Boko Haram.
Quando, um terço de século atrás, cheguei à cidade de Maiduguri, capital do estado de Borno, no nordeste da Nigéria, todos saíam de casa para assistir às execuções públicas.
As execuções eram evidentemente o melhor programa gratuito da cidade: eu os assisti (tudo, menos o desfecho) na tevê, no bar do hotel naquela noite, quando foi dito que o platéia – ou o que vocês chamem os participantes de uma execução pública -, quase que se frustrou com o fato de que o terreno de execução estava encharcado e, portanto, as estacas não poderiam ser adequadamente – com segurança? – cravadas ao solo.
“Felizmente”, disse o apresentador (embora não tenha sido feliz para todos), uma parte seca no terreno foi encontrada, as execuções se realizariam conforme agendadas, e os corvos não ficariam desapontados.
Os três a serem executados eram ladrões armados, embora um deles ainda alegasse ser inocente quando o microfone do apresentador foi à sua direção enquanto ele estava amarrado à estaca. Somente em uma visita posterior à Nigéria eu soube que a polícia e os soldados às vezes alugavam suas armas para bandidos e ladrões por uma noite.
Apesar disso, o norte da Nigéria pareceu pacífico o bastante para mim. Eu havia entrado por terra vindo do norte de Camarões e nem mesmo tive que pagar suborno ao guarda de fronteira, pois ele quis falar comigo sobre o Manchester United, seu time favorito (ele sabia muito mais sobre eles do que eu).
Uma experiência no norte dos Camarões ficou gravada em minha memória. Eu estava parado na beira de uma estrada esperando um ônibus em uma área isolada. Uma mulher que morava em uma cabana de grama ou palha a 200 metros de onde eu estava saiu da cabana com uma cadeira de madeira rústica simples para eu sentar.
Ela devia saber que, comparado a ela, eu era um pirralho mimado, mas mesmo assim ela fez isso, e com uma graça natural também. Na verdade, ao cruzar a África de leste a oeste por transporte público durante um período de seis meses, nunca sofri nenhuma grosseria.
Viagens seguras
O norte da Nigéria era considerado mais seguro para o viajante do que o sul do país, pois era mais honesto, ao menos na vida diária e nos negócios.
Talvez isso não fosse surpreendente. Em um mercado que eu estava visitando, de repente a gritaria começou: um menino estava roubando; uma multidão o perseguiu e o espancou severamente. Você não precisava cuidar de seus pertences no norte da Nigéria e, uma vez, quando os esqueci na rua, ainda estavam lá quando voltei.
Talvez eu ainda fosse um jovem inexperiente e desatento, mas não senti nenhuma hostilidade religiosa em relação a mim. Se havia alguma, não percebi. É verdade que na cidade de Sokoto, capital de um sultanato, havia ocorrido recentemente um motim entre muçulmanos e cristãos sobre a questão do álcool (permitido beber apenas em uma área específica), mas os distúrbios não eram muito graves, ninguém foi morto e as coisas voltaram ao normal.
Quando experimentei um boubou (traje típico) no mercado local, todos pareceram encantados, embora até hoje eu não tenha certeza se eles estavam rindo comigo ou rindo de mim. Eles disseram que isso mostrava que eu gostei do povo – e eu gostei mesmo.
Boko Haram
Eu não fazia a menor ideia de que, um quarto de século depois, as áreas pelas quais eu havia passado sem cuidados no mundo se tornariam o centro de uma das organizações terroristas mais cruéis do mundo, o Boko Haram, responsável por dezenas de milhares de mortes, milhões de deslocados, o sequestro em 2014 de mais de 200 estudantes com a intenção de escravizá-las e, ao menos se acreditarmos em suas reivindicações de “autoria”, o sequestro 330 estudantes ou mais no estado de Katsina (que agora já foram quase todos libertados).
O Boko Haram, cujo nome aparentemente significa “a educação ocidental é proibida”, expressa um grau assustador de ódio pela civilização ocidental, ainda que tal ódio seja inconsistente ou hipócrita, pois nenhum grupo terrorista poderia viver sem os produtos e invenções dessa civilização.
Esse ódio insensato estava borbulhando sob a superfície todos aqueles anos atrás, despercebido por mim, ou é algo novo, e se sim, causado por quê?
Olhando para trás, passei muitas vezes por países que pareciam providos de governos estáveis, senão necessariamente modelos ou admiráveis: a União Soviética não muito antes de sua implosão e o Irã não muito antes do advento do Aiatolá, por exemplo.
Também passei por países não muito antes de afundarem na violência mais atroz: o Sri Lanka antes dos Tigres Tames, por exemplo, o Peru antes do Sendero Luminoso, e Ruanda antes do genocídio dos tutsis.
Lembro-me até de pensar, neste último caso, que Ruanda estava entre os países mais bem organizados que eu tinha visto na África, e bastava olhar além da fronteira para o Zaire, como era então chamado o Congo durante o longo governo de Mobutu Sese Seko, e ver a diferença: de um lado, caos e bagunça, e de outro, limpeza e cultivo.
Vi, na Libéria, o desmantelamento total de todos os símbolos da civilização ocidental moderna, como por exemplo, os hospitais e a universidade. Essas instituições não tinham apenas sofrido os danos colaterais de uma terrível guerra civil que custou a vida de talvez um oitavo ou um décimo da população, mas foram sistematicamente percorridas e, cuidadosamente, podendo-se mesmo dizer meticulosamente, destruídas – como se isso tivesse sido feito com o veneno pessoal ou ódio não apenas para aqueles que os possuíam, mas para as próprias coisas e o que elas representavam.
Jamais esquecerei a maneira como as rodas foram serradas de toda a mobília hospitalar no então totalmente deserto hospital universitário de Monróvia,em uma tentativa extremamente árdua de destruir o hospital tão completamente que nunca mais pudesse se reerguer.
Somos muito civilizados, muito estáveis, para fazer algo assim? Nossos poderes de previsão são limitados demais para termos certeza, e a história não é totalmente encorajadora. Por muito tempo, a palavra civilização apareceu como “civilização” nos escritos dos bien pensant; Virginia Woolf defendeu o incêndio regular de bibliotecas. As alegrias da destruição e da justiça própria se unem todas com facilidade.
Theodore Dalrymple (Anthony Daniels), médico britânico e autor de 25 livros, dentre os quais ‘Evasivas Admiráveis – Como a psicologia subverte a moralidade’, ‘Em Defesa do Preconceito’ (leia resenha aqui), e ‘Nossa Cultura – ou o Que Restou Dela’, também é senior fellow no Manhattan Institute.
Publicado no The Epoch Times.
Tradução: Editoria MSM
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