Fraudemia, micróbios e máscaras: uma aula jamais esquecida

Por Paula Felix

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Fico imaginando se hoje ainda haveria algum professor com coragem de dar uma aula assim.

Ao longo de todo este ano de fraudemia uma coisa ficou martelando na minha memória: a lembrança da minha primeira aula de microbiologia. Era, salvo engano, o ano de 93 e o laboratório ficava no Integrado, prédio que servia a várias faculdades biomédicas no campus da Universidade Federal do Maranhão. Naquele dia fomos recebidos pelo professor e pelo técnico do laboratório ante a grande bancada central sobre a qual se dispunham, além de equipamentos, instrumentos e vidraria, pequenas pilhas de quatro placas de petri preenchidas com meio de cultura, esterilizadas em autoclave e seladas, uma pilha para cada aluno.

Houve uma breve explanação acerca das regras de manuseio e segurança do laboratório, nada muito elaborado, visto que vínhamos de várias outras disciplinas de laboratório e nada ali parecia ser novidade. Após, uma breve explicação dos taxa microbiológicos e do escopo geral da disciplina, e então o professor nos convidou a, assim como tínhamos vindo da rua (era início da tarde e muitos havíamos chegado ao campus por meio do ônibus do Anjo da Guarda, cujo ponto final era o leprosário – sim, o Maranhão é um dos campeões mundiais de incidência de lepra), abrir uma das placas de petri, imprimir no ágar a impressão de nossos dedos, fechá-la, identificá-la e colocá-la na estufa para cultivo. Todos imaginamos que apenas daquelas placas sairiam todos os tipos de micro-organismos que precisaríamos estudar até o fim do semestre, e estávamos certos.

Em seguida, o professor, peço perdão por não me lembrar de seu nome, salvo de sua aparência que nos fazia chamá-lo de Playmobil, pelas costas, é claro, nos instou lavar as mãos no grande tanque que havia junto à porta, com bastante sabão de coco, e não enxugá-las com nada, apenas sacudi-las até que secassem o bastante para nos permitir abrir a segunda placa de petri e proceder como fizéramos com a primeira. Agora, pensamos, teremos como comparar os efeitos da higiene simples pois nada crescerá nestas placas.

Feito isso, o professor passou com pissetas com álcool a 70%, com o qual lavamos novamente as mãos e repetimos o procedimento com a terceira placa de petri. É, é nesta que não vai crescer nada. Porém havia ainda a quarta placa. Antes que a abríssemos, o professor Playmobil tirou do armário um grande frasco de desinfetante cirúrgico, polvidona, se não me falha a memória. Aquilo, sabíamos, matava 99,99% de qualquer coisa em que encostasse, e agora sim, com certeza teríamos o controle negativo do experimento, o meio de cultura em que nada cresceria.

Esta foi toda aquela aula. Na semana seguinte, voltamos ao laboratório, onde fomos recebidos com as mesmas pilhas de 4 placas com as nossas impressões digitais. Num gradiente de maior para menor abundância, em todas havia crescido uma bela variedade de microorganismos. Foi então que a aula, de fato, começou e o professor nos explicou que todas as superfícies e todos os seres vivos estão cobertos, por dentro e por fora, por micro-organismos e que não há meios estéreis senão, por pouco tempo, após serem autoclavados ou submetidos a doses letais de radiação ionizante. Mesmo em álcalis, ácidos ou álcoois fortes, micro-organismos sobreviviam, e se não fosse por sistemas de defesa desenvolvidos por seleção natural ao longo de eras, nenhum outro ser sobreviveria na Terra. Todos seríamos devorados por fungos, bactérias, protozoários e vírus.

Fico imaginando se hoje ainda haveria algum professor com coragem de dar uma aula assim, se tais ensinamentos não seriam condenados como fake news ou teoria da conspiração, ou se algum dos bilhões de histericovids que se acreditam protegidos por trapos estendidos sobre seus narizes ou vacinas caça-níqueis sobreviveriam a ela.

 

Paula Felix é mãe, cristã e mestre em Biologia Celular e Estrutural pela Unicamp.

 

2 Comentários
  1. Fred Diz

    Sensacional! A fraudemia exposta!

  2. Regis Augusto Michalski Diz

    Perfeito!

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