Editorial de jornal velho n’O Globo e a casa sem espelhos
Por Percival Puggina
Com atraso mínimo de três anos, já bem andado o calendário de 2022, o Globo do dia 15 deste mês de junho publica editorial apontando alguns dos abusos de poder e tropelias que têm sido, nos últimos anos, marcas registradas pelo Supremo Tribunal Federal nos anais da História. São pegadas, digitais e material genético ali depositados pelos ministros de FHC, Lula, Dilma e Temer.
Pois foi nesse material já mofado que O Globo, como quem vê recorte de jornal velho, resolveu dar uma olhada. Sobre o ativismo, erros, demasias que ali se acumulam nada tem sido dito naquele espaço abençoado pelo ministro Alexandre de Moraes com o nome de “mídia tradicional”. Ao mesmo tempo, na liberdade das combatidas e cerceadas redes sociais, centenas, milhares, de criteriosos analistas vêm apontando ao longo dos anos males e malefícios que agora, e só agora, merecem a atenção do jornal.
Em todo o Grupo Globo, repórteres, comentaristas, articulistas, âncoras têm feito uso de poderosos recursos de comunicação para ratificar a inocência, a correção e o serviço prestado por essa herança legada, ou sequela deixada no Supremo pela sucessão de governos de esquerda que comandou o país entre os 1994 e 2018. Os espaços de jornalismo do Grupo, quando se trata de ativismo e abusos praticados por ministros do STF – sempre contra a direita, o governo Bolsonaro e seus apoiadores – vai ouvir os “peritos” da advocacia chique do grupo Prerrogativas (“Prerrô” para os íntimos), dos Juízes para a Democracia, de ex-ministros petistas do STF e de ativistas de outros coletivos com igual perfil.
Totalmente inesperado, embora positivo, que assim, no clarão de um relâmpago, o editorial de O Globo reconheça como “insidiosa” (enganadora, traiçoeira, pérfida) a politização do STF. Surpreende que aponte como “sem cabimento” a concessão de prazo para o presidente tomar providências nas buscas pelos desaparecidos na Amazônia e registre as dificuldades do ministro Fachin em se desvencilhar da encrenca que sua retórica provocadora arrumou com os militares em torno das urnas eletrônicas.
“Não é de hoje que o Supremo invade competências de outros poderes” admite o editorial, transcrevendo opinião do jurista Gustavo Binenbojm, para quem “o STF brasileiro, ao lado do colombiano e sul-africano, está entre os mais ativistas do mundo”.
A recortagem de notícias velhas vai adiante lembrando a prisão do deputado Daniel Silveira, os inquéritos das fake news e dos atos “antidemocráticos”, a criação de crime sem lei federal ao equiparar homofobia ao racismo. A lista real é muito, muito mais extensa, mas o editorial é um sinal de reconhecimento à atividade de tantos que, como eu, apontaram cada um desses abusos e responsabilizaram o Grupo Globo por seu apoio explícito ou silencioso consentimento à politização do Supremo.
Uma casa sem espelhos
Leio no Correio Braziliense:
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), contestou a declaração do presidente da Corte, ministro Luiz Fux, de que a anulação dos processos derivados da Operação Lava-Jato foi um ato “formal” e que os erros processuais não apagam os fatos que foram demonstrados nas investigações. Crítico dos métodos utilizados pelos procuradores de Curitiba, Gilmar afirmou na tarde desta segunda-feira, 13, durante almoço com empresários no Rio de Janeiro, que “ninguém discute se houve, ou não, corrupção”, mas que “não se combate crime cometendo crime”.
Comento
O ministro Gilmar Mendes, bem como seus confrades na confraria do STF, tem o hábito de desconsiderar fatos que não contribuem para a narrativa da hora. Um desses fatos jogados à masmorra do esquecimento foi a mudança de posição do próprio ministro em relação à prisão após condenação em 2ª instância. Em 2016, o ministro Gilmar integrara a maioria que por 6 a 5 estabelecera essa possibilidade; em 2019, mudou de convicção e, em nova “maioria de circunstância”, como talvez dissesse o ex-ministro Joaquim Barbosa, derrubou o que antes aprovara.
Não devemos esquecer que foi a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância que formou a fila de confessionário e de delações em Curitiba. A Lava Jato só alcançou os resultados que obteve graças às admissões de culpa e às possibilidades de redução de penas (ou até mesmo de perdão judicial) por colaboração com as investigações ou delação de outros criminosos feitas ante a possibilidade de prisão em curto prazo. O novelo recursal prosseguia rumo à eternidade, mas a pena começava a ser cumprida de imediato. O natural pavor do criminoso consciente do crime que cometeu, ante a porta da cadeia abrindo-se ali na primeira esquina, hoje vem sendo chamado, injustamente, de “tortura psicológica” imposta a esses desamparados… Arre!
A Lava Jato morreu, pois, em 7 de novembro de 2019, quando a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância ganhou caráter excepcionalíssimo. Clima de velório na sociedade e dia de festa na Papuda! Solenes homenagens a São Nunca. Embora morta, a Lava Jato ainda permaneceu aberta à visitação até o dia 8 de março de 2021, data em que o confrade Edson Fachin, após 10 sólidas decisões anteriores em sentido contrário, evaporou-as, mudou de posição e anulou a os processos de Lula que, julgados em Curitiba e no TRF-4, não tinham relação com a Petrobras.
O leitor destas linhas deve ter percebido essas “maiorias de circunstância”, essas mudanças súbitas de orientação e essas decisões capazes de reverter condenações julgadas e “rejulgadas” e “rerejulgadas”. Deve ter observado, também, o alinhamento político que caracteriza ampla maioria da atual composição do STF. Deve sentir, como eu, que ela traz insegurança jurídica e solapa, por essas e muitas outras razões, a confiabilidade da Corte, uma casa aparentemente sem espelhos.
Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário, escritor, colunista de dezenas de jornais e titular do site www.puggina.org, no qual os presentes comentários foram publicados originalmente. Autor dos livros ‘Crônicas contra o totalitarismo’; ‘Cuba, a tragédia da utopia’; ‘Pombas e Gaviões’e ‘A Tomada do Brasil’. Integrante do grupo Pensar+.