Desde que o homem descobriu a possibilidade de viver em sociedade, percebeu que se via obrigatoriamente diante de um dilema: usando a metáfora de Homero, deveria oscilar entre o Scyllas do isolamento, que lhe garantia liberdade total, embora incompatível com a divisão do trabalho e, por isso, limitador do progresso, e o Caribdes da vida em grupo, que lhe restringia a liberdade, mas gerava incontestáveis benefícios, proporcionais à sua capacidade e determinação. A fórmula encontrada para conciliar o dilema foi criar uma espécie de acordo ou consenso comunitário, que implicasse cessão de parte da sua liberdade, em troca de garantias aos direitos individuais básicos, para que os mais fortes, inteligentes, capazes e perspicazes não dominassem os mais fracos, néscios, incapazes e broncos, o que resultaria na concentração do poder em mãos de poucos.
Esta é, em síntese, a origem do Estado e de seu braço executivo, o governo: com a finalidade de evitar que alguém, ou que algum grupo, se transformasse em opressor dos demais, a sociedade passa a aceitar a existência de um ente teoricamente neutro, equidistante e preocupado em zelar pelos interesses de todos, pelo bem comum dos cidadãos. Belas palavras, sem dúvida, e muitas pessoas acham muito bonito descrever esse acordo tácito como contrato social. Porém, se você se der ao trabalho de pesquisar na internet em todos os cartórios, duvido que encontre esse documento escrito, com assinaturas e firmas reconhecidas.
Conquanto a maneira de conciliar o dilema referido sempre tenha existido, a hipertrofia que o Estado experimentou, especialmente a partir do século XX, fez com que ele, que nascera para prevenir um mal – o da concentração de poder nas mãos de meia dúzia de indivíduos – acabasse produzindo outro, maior, o da concentração de poder – político, econômico e cultural -, em suas próprias mãos.
Liberais clássicos e minarquistas não advogam que o Estado não deve ser “forte”, mas, para isso, paradoxalmente, a extensão de seus poderes deve ser severamente limitada, uma vez que seu ethos não pode ser separado da defesa da liberdade individual responsável como um bem natural e ligado ao supremo direito à vida, o que nos conduz à defesa do papel que a lei deve desempenhar para garantir a liberdade e os direitos de todos. A essência da visão hayekiana do Estado é que ele deve ser contido, tanto quanto possível, limitando-se à manutenção de instituições (como o Judiciário, por exemplo) e as regras que regem sua administração devem ser estabelecidas como normas gerais de justa conduta. Quando os comandos ou ordens prevalecem sobre a lei negativa – a common law -, os cidadãos tornam-se servos do Estado e caem no que ele chamou de caminho da servidão.
Tendo essa necessidade de comedimento do poder em mente, é importante refletirmos sobre cinco pontos a respeito da natureza do Estado:
(1º) a tese de que “o governo somos nós”, em decorrência do poder do nosso voto, na prática, é questionável e na verdade contém um forte laivo retórico.
(2º) o Estado não é uma associação voluntária, como um clube ou um sindicato, mas uma organização que procura manter o monopólio do uso da força em uma determinada área territorial.
(3º) tampouco é verdadeira a noção, algo mística, de que o Estado é uma grande “família humana”, que se reúne aos domingos em torno da mesa de almoço para solucionar os problemas de todos: na verdade, podemos enxergá-lo como um canal legalizado para a apropriação da propriedade privada, uma instituição natural fundamental e anterior à sua própria criação.
(4º) é falaciosa a ideia, ingenuamente difundida, por exemplo, entre os economistas, políticos e intelectuais ditos progressistas, de que o Estado, sempre que intervém na economia e na nossa vida, o faz movido por boas intenções e “motivos superiores”, corrigindo as falhas do mercado malvado e preocupado com o bem de todos.
(5º) o Estado é composto por seres humanos e, portanto, reflete suas fraquezas, entre as quais a de interessar-se mais por assuntos de alcance particular e pela preservação do poder do que pela busca do bem comum.
Por esses motivos, que acredito – noves fora a credulidade ingênua e a necessidade de negá-los para preservar ou ganhar poder -, serem incontestáveis ao descrevermos a natureza do Estado, as instituições devem ser modeladas com o objetivo de garantir a contenção de seu poder. Convido o leitor a refletir sobre o que escrevi acima e acreditando que chegará à conclusão de que o Estado não é nosso dono, nem tampouco nosso pai, é nosso servo! No dia em que conseguirmos disseminar esta constatação tão simples, mostrando como o mecanismo de poder cerceia as nossas liberdades, poderemos começar a esboçar o mundo que as pessoas de bem e que prezam a vida, a liberdade e a propriedade almejam.
Publicado no site do autor com o título “Cinco fatos sobre a natureza do Estado”.
Ubiratan Jorge Iorio é doutor em economia pela FGV.
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