A mais patente característica da modernidade é, ao meu ver, o que Olavo de Carvalho descreveu como progressiva absorção das consciências individuais em um todo coletivo abstrato. É completamente impossível compreender o mínimo que seja sobre as atuais movimentações políticas, sociais, econômicas e culturais prescindindo da percepção deste fenômeno que já toma proporções universais. Acompanhar a história da marcha do ateísmo e do materialismo em suas mais diversas expressões através dos séculos, cuja personificação atual se revela principalmente na hegemonia cultural da esquerda e nos tentáculos onipresentes dos blocos globalistas, é, sem qualquer dúvida, acompanhar a história da morte do exercício das liberdades individuais; é ler o obituário da consciência de si.
É, no entanto, sobre o cristianismo que a civilização ocidental se encontra estruturada, e este fato é já um ponto de atenção: “cristianismo” refere-se não a um arranjo teórico organizado por tais ou quais intelectuais, nem a qualquer proposta socioeconômica planejada por políticos profissionais ou transformadores sociais, nem a qualquer ideal de igualitarismo a ser alcançado através da concentração de poder nas mãos de uma meia dúzia (nem de uma dúzia inteira, no caso) de discípulos militantes, mas refere-se aos fatos concretos que compõem a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Em outras palavras: refere-se a uma pessoa e sua biografia. E essa pessoa, em absolutamente tudo o que viveu e ensinou enquanto esteve entre nós, fez um apelo direto às consciências individuais, a cada ser humano em sua mais íntima singularidade, distintiva de qualquer massa difusa e indivisa na qual pudesse vir a ser um dia absorvido.
Isso quem nos quer deixar claro, antes de tudo, parece-me que é o próprio Cristo, tão simples e objetivas são as palavras da sua pregação: arrependimento dos pecados e conversão, visando a salvação da alma. Arrependimento dos seus pecados, salvação da sua alma — não se trata, pois, como também já pontuou em certas aulas o prof. Olavo, da salvação de um povo como um todo (judaísmo) ou da instituição de uma sociedade santa (islamismo); o alvo de Cristo é cada alma humana. Não fosse sua mensagem já suficientemente límpida a esse respeito, há ainda o fato de Jesus nunca ter ensinado ou exigido que, a fim de ser salvo, o sujeito devesse pertencer a determinado grupo ou classe social, identificar-se com esta ou aquela patota política, ou mesmo tornar-se formalmente um discípulo seu. Não; a todo aquele que aceita seu convite — decisão portanto individual e livre desde o início —, o que se impõe é uma tarefa não de ordem social, mas inteiramente pessoal e intransferível, desde o vigiar-se a si mesmo contra “o mundo, o diabo e a carne” até a renovação diária da escolha por este modo de vida e o esforço de permanência na verdade.
As passagens reunidas no Novo Testamento a respeito dos milagres operados por Jesus também são excelentes demonstrações dessa fundamental primazia da consciência individual sobre os coletivismos. Ao ter diante de si alguém como o cego Bartimeu (Mc 10, 46-52), por exemplo, e perguntá-lo, talvez para o estarrecimento dos circunstantes, “o que desejas?”, Jesus não o faz por algum lapso de estupidez, muito menos de sadismo (afinal, como dizia o falecido Pe. Léo, SCJ, o que mais poderia querer o bendito cego que não enxergar? Uma bengala nova?). Está, antes, implicando o pobre homem pessoalmente em sua própria cura, fazendo dela não apenas uma mera demonstração esbanjada de poder por parte de Deus, mas um ato decorrente direta e essencialmente da fé deste cego, bem como da sensibilidade e direcionamento de sua consciência para a verdade. Os costumeiros pedidos subsequentes para que não se contasse ao povo a origem milagrosa da cura perfazem, entre outras coisas, a caracterização do milagre não como um contrato social, e sim como algo da ordem de uma relação íntima entre duas pessoas: o agraciado e Deus — ou, em termos mais gerais, entre a realidade mesma e sua autoiluminação numa consciência individual, que agora é autoconsciência. Invariavelmente, o pedido de sigilo era quebrado, as multidões se alvoroçavam em torno de feitos tão grandiosos, e quando as intocáveis encarnações dos poderes da época vinham a ter deles conhecimento, inquietavam-se em indagações nutridas não por um espírito de curiosidade sincera sobre a natureza dos fenômenos e suas possíveis significações, mas quanto à autoridade com que Jesus os realizava.
Ora questionam com que jurisdição expulsa demônios (Mt 12, 22-28), ora com que respaldo ousa curar aos sábados (Jo 5, 16-18; Mt 12, 1-14); interrogam incessantemente um cego de nascença a respeito do homem que lhe devolvera a visão: quem era, de onde vinha (Jo 9, 1-30); afinal, que Deus escolhesse manifestar-se tão gloriosamente na figura de um qualquer do povo, em detrimento da excelsa casta sacerdotal, isso não podiam conceber sequer como hipótese. A questão era mesmo lidar com ele de uma vez, antes que lhes custasse a posição social e o prestígio de que gozavam junto ao resto da população. Mas a palavra autoridade vem de autor, e todas as vezes que Jesus realizava alguma de suas maravilhosas obras, deixava perplexos seus adversários, que, recusando-se a concebê-lo tal como quem realmente era, só podiam arder raivosamente em suspeições delirantes de alguma influência oculta, talvez política, a ditar-lhe as ações, ou cindir de vez com o real no ato mesmo da negação dos fatos testemunhados. Mas Jesus tanto havia agido sozinho o tempo todo, ou seja, em autoridade própria, que teve representados contra si, de uma só vez, o poder político romano, a massa comum dos judeus e a casta sacerdotal e dos doutores da Lei. A autoria de alguma coisa é sempre de uma consciência; “classe social”, “partido”, “comunidade”, são designações abstratas de coletividades que só existem no mundo das palavras; no mundo da realidade, essas designações dissolvem-se em um punhado de pessoas de carne e osso, essas sim dotadas cada uma de consciência e inteligência, essas sim autoras possíveis do que quer que seja.
A despeito dos esforços dos teólogos da libertação e de outras crias abjetas da sistemática infiltração comunista na Igreja católica, Jesus Cristo não foi um revolucionário, não preconizou nenhum ideal socialista, nem jamais subjugou qualquer alma humana à sua dissolução no interior de uma massa ou grupo social qualquer. Teve apóstolos — todos martirizados, à exceção de um —, e não militantes enfezados a fuzilar seus adversários no paredão; sua autoridade vinha do Pai, e não do Estado; pregou a salvação da alma, e não da sociedade; disse que a verdade nos libertará (Jo 8,32), e não a igualdade social; morreu pelo seu povo, não o matou de fome. Não — Nosso Senhor Jesus Cristo não era comunista.
Toda a vida de Jesus, desde os menores detalhes, é um canto solene e grave, mas também sereno, dirigido à mais profunda intimidade da consciência de cada ser humano; é uma súplica e um encorajamento à descoberta das misérias e virtudes pessoais, ao exercício da inteligência e da consciência de si e da realidade, único meio pelo qual podemos participar e experienciar a fé, o amor e o verdadeiro espírito filosófico, que é também amor — à verdade, e portanto a Deus.
Publicado no Cultura de Fato.
Texto apologético! Magnífico!