CIA: Mito e História
Por Jeffrey Nyquist, em 13 de junho de 2007 .
Arquivo MSM.
Resumo: O que significa dizer que a KGB, “espada e escudo” do Partido Comunista da União Soviética, “não está morta”? Significa uma futura seqüência destrutiva para a qual os EUA não estão preparados.
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“Os americanos normalmente têm orgulho, e com razão, do fato de que as tendências ‘conspiratórias’, que parecem naturais e inatas a muitos outros povos, tendem a estar ausentes de suas naturezas e dos ambientes onde vivem. O outro lado da moeda é que o público americano, ciente disso, freqüentemente sente que, tanto na nossa diplomacia quanto nas grandes ações de inteligência, não somos páreo para o ‘estrangeiro esperto’. Os estrangeiros, do mesmo modo, atribuem aos americanos uma certa credulidade e ingenuidade”.
Não deveria causar qualquer surpresa que a história da CIA durante a Guerra Fria tenha sido invertida, distorcida, mitificada e mistificada. Pois na história oficial da CIA, aceita até hoje, os crédulos foram transformados em heróis, os falsos desertores em desertores genuínos e os especialistas em assuntos soviéticos aparecem como “paranóicos” enquanto seus oponentes burocráticos são lembrados como salvadores. Esta falsificação da história chegou a ser popularizada em livros, tais como Wilderness of Mirrors, de David C. Martin, Cold Warrior, de Tom Mangold e Molehunt: The Secret Search for Traitors That Shattered the CIA, de David Wise. Até que, finalmente, um dos personagens principais da história da CIA resolvesse escrever um relato em primeira mão demolindo as já populares falsificações de Martin, Mangold e Wise. Esse personagem é o ex-chefe do departamento de contra-inteligência da CIA responsável pelo bloco soviético, Tennent H. Bagley, autor do livro intitulado Spy Wars: Moles, Mysteries and Deadly Games. [Guerra de Espiões: Agentes Infiltrados, Mistérios e Jogos Mortais] [1].
Bagley escreve com elegância e sem rodeios ao descrever o declínio da CIA. Este começou nos anos 60, quando a investigação sobre um desertor da KGB chamado Yuri Nosenko tomou um caminho errado e se embrulhou toda. Para satisfazer burocratas nervosos que queriam encerrar a investigação, pessoal não especializado recebeu a tarefa de ‘reabilitar’ Nosenko (i.e., declará-lo oficialmente um desertor genuíno e confiável) e isto, mesmo depois que ele já tinha desacreditado a si mesmo completamente. Para acreditar na autenticidade de Nosenko, conforme ressalta Bagley, a CIA teria de aceitar a idéia de que a “KGB verdadeiramente operava segundo procedimentos diferentes daqueles descritos por todos os outros desertores” (anteriores e posteriores a Nosenko) e teria que também acreditar “naquilo que Nosenko contou sobre sua vida – ainda que fosse a sua quarta ou quinta versão…”
Bagley lamenta que a verdade sobre Nosenko tenha sido enterrada sob “camadas de mentiras repetidas com tanta freqüência que essas acabaram por se transformar em senso comum”. A própria falsidade se tornou um mito, e, tal como uma vez observou o historiador Paul Veyne num ensaio sobre mitologia, “A própria vida cotidiana, longe de estar enraizada na imediação, é a encruzilhada da imaginação. […] Empirismo e experimentação são quantidades insignificantes”. Em organizações vastas e poderosas, onde as complexidades da verdade estão ao desabrigo diante da crueza do poder da burocracia e de suas investidas ameaçadoras, a compreensão ampla se transmuta em falsificação retrospectiva. A existência é então mediada por sucessivos “palácios de sonho” que se fazem, todos, passar por verdades. De acordo com Veyne, “Quando alguém não vê o que não vê, não vê nem sequer que está cego”.
Esta frase descreve a CIA quando engoliu a isca de Nosenko, com anzol e tudo. Foi uma inteligente peça de estratégia contar aos burocratas aquilo que eles queriam ouvir. Entendam: o restante da humanidade precisa lidar com verdades desagradáveis, mas um burocrata é um animal especial. Ele pode ignorar a opinião de especialistas, jogando os fatos na lata de lixo enquanto alça a ficção ao status de verdade. Deste modo, ele colhe a recompensa por um serviço bem feito e evita ser responsabilizado por problemas. Dos desertores, os manda-chuvas da CIA queriam só boas notícias. Ora, Nosenko estava dizendo, em profusão de palavras, que não havia nem um só agente soviético infiltrado próximo ao topo dos serviços de inteligência americanos. Ele afirmava que a KGB falhara nas tentativas de recrutar determinados alvos. A sua informação depreciava as pistas que foram dadas por um desertor anterior, chamado Anatoliy Golitsyn.[2]
De acordo com o relato de Bagley, “A comunidade de inteligência americana tinha apoiado e encorajado a falsidade e a fraude tão inequivocamente – e perdido tanto com isso – que se alguém da CIA ainda se lembrasse, provavelmente teria preferido deixar este cachorro [3] [Bagley] quieto”. A CIA mesma foi convertida numa fortaleza do inimigo. Para aqueles que não entendem como o jogo é jogado, uma breve explicação já deve ser suficiente: o método da KGB consiste em manipular os serviços de inteligência estrangeiros através do uso de falsos desertores, de agentes duplos e de agentes infiltrados[4] combinados em agressivas manobras operacionais. Uma vez que um falso desertor seja aceito como genuíno, a posição dominante da KGB no interior da organização alvo fica demonstrada. A segurança de seus agentes infiltrados está garantida. A informação falsa passada pelos agentes duplos é assim corroborada e o veneno é, então, digerido por completo. O establishment inteiro, por sua vez, acha que está aquecido e confortável, debaixo de um cobertor de mentiras.
Alguns leitores podem pensar que tudo isso é irrelevante, que é notícia velha, pertencente a um passado distante; afinal, a Guerra Fria acabou. Mas não é isso que vemos hoje, com a foice e o martelo reaparecendo na bandeira russa, com a América Latina e a África voltando-se para o marxismo, com a Europa derivando para a neutralidade, com os EUA sendo vilipendiados mundo afora e com a Rússia e a China formando uma nova aliança militar. Algo de muito ruim está se desenvolvendo além e fora das falsas esperanças dos EUA e da história falsificada da CIA. Os EUA foram avisados desses eventos com bastante antecedência. O alerta veio de Anatoliy Golitsyn, um ex-major da KGB. Apesar de Bagley não mencionar as advertências de Golitsyn ao Ocidente, a lenda de Nosenko foi usada para desacreditar Golitsyn e seu falecido padrinho dentro da CIA, James Angleton. Em termos da grande estratégia russa, a lenda de Nosenko foi usada para afirmar que Golitsyn estava mentalmente doente, que suas previsões e análises eram paranóicas e sem valor. Mesmo deixando Golitsyn de lado, a intuição de Bagley o induz a especular se as mentiras de Nosenko poderiam ter aberto o caminho para um “continuum de traição que pode estar ativo até hoje”.
A KGB está viva e passa bem. Seus métodos incluem terror, assassinato e subversão. Seu objetivo é o velho objetivo; e eu creio que este é o contexto para o “continuum de traição” do qual fala Bagley. Depois do colapso do comunismo, tal como relata Bagley, um editor alemão queixou-se ao coronel da KGB, Oleg Nechiporenko, a respeito do manuscrito de um ex-agente infiltrado da KGB que passara vinte anos trabalhando na Radio Liberty [5], dizendo que o relato desse agente infiltrado carecia de detalhes suficientes. Nechiporenko repreendeu o editor por sua ingenuidade. De acordo com Nechiporenko, a operação daquele agente “era parte de uma articulação, uma parte de uma operação. […] E essa operação ainda não acabou”. Ademais, qualquer relato completo poderia revelar à CIA “o que a KGB fez e fará. A KGB não está morta”.
O que significa dizer que a KGB, “espada e escudo” do Partido Comunista da União Soviética, “não está morta”? Significa uma futura seqüência destrutiva para a qual os EUA não estão preparados. Aqui, nós por acaso topamos com uma operação incompleta. É uma obra em execução. Na verdade, a própria União Soviética continua a existir de forma disfarçada. Os países satélites também, disfarçados sob esfarrapadas fantasias democráticas. Assim, toda a estratégia dos EUA repousa sobre uma base falsa.
Depois de sua reabilitação pelo quartel-general da CIA, Yuri Nosenko foi transferido para Washington, onde se tornou um consultor do FBI e da CIA em assuntos de contra-inteligência. “No devido tempo”, diz Bagley, “ele começou a dar palestras regulares nas escolas de contra-inteligência da CIA, FBI, Força Aérea e de outras agências, e a partir de meados dos anos 70, entrava com freqüência no prédio do quartel-general da CIA em Langley, Virgínia”. E durante todo esse tempo, frisa Bagley, “O edifício torto e vacilante” que isentava Nosenko “não resistiria nem mesmo a mais suave brisa de ceticismo, muito menos ao escrutínio de profissionais ou mesmo de estudiosos”.
Todo americano deveria ler este livro.
© 2007 Jeffrey R. Nyquist
Publicado por Financialsense.com
[1] O título traduzido é meramente ilustrativo. Ainda não há edição em português.
[2] Para mais informações sobre Golitsyn em português, busque nos arquivos do MSM.
[3] No original, Bagley faz também um jogo de palavras ao aludir ao ditado popular “let sleeping dogs lie”, e que significa algo como “não mexa em velhas feridas”, pois lie é tanto deitar, repousar, quanto mentir ou mentira.
[4] Mole, no original, às vezes traduzido literalmente como toupeira. No jargão dos serviços de inteligência americano e britânico, é qualquer civil ou militar do país alvo recrutado pela inteligência inimiga, sob chantagem, em troca de dinheiro ou por afinidade ideológica. É também possível que um falso desertor, erroneamente reabilitado, ganhe posições que lhe confiram acesso a informações sensíveis ou à possibilidade de influir em decisões de inteligência do país alvo. Conforme o articulista e o livro analisado, este é o caso de Yuri Nosenko.
[5] Também conhecida como Rádio Europa Livre (RFE/RL), foi fundada em 1949 com o objetivo de transmitir notícias para os países atrás da Cortina de Ferro. Até 1971, teve o envolvimento direto e oficial da CIA.
Tradução: MÍDIA SEM MÁSCARA