Marx e o pensamento dos outros

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Por Ipojuca Pontes.

Para Hegel, vale insistir, o Estado é o todo perfeito, e o indivíduo, ou cidadão, apenas uma peça dessa totalidade.

 

A expressão “pensamento filosófico de Marx” há muito vem sendo encarada como uma contradição em termos. Para significativa corrente do pensar filosófico, o marxismo não passa de uma filodoxia, e o seu criador, não propriamente um filósofo em busca da verdade, mas mero filódoxo, na expressão de Kant (1724-1804), um sujeito que enfrenta os problemas de natureza filosófica sem nenhuma intenção real de resolvê-los.

Um exemplo típico da mistificação de Marx encontra-se na sua tese de nº 11 sobre Fuerbach (1804-1872), em que dá conta de que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo; trata-se, porém de transformá-lo” – afirmação que, encerrando a mística do processo revolucionário como agente transformador da realidade, só consolida a visão da história crítica como substituta da filosofia – o que significa, em última análise, decretar a morte da própria filosofia.

De fato, enquanto pensador ou ativista intelectual, Karl Marx (1818-1883) pouco ou em nada se voltou para a investigação metódica do fundamento do ser e do espírito das coisas – objetivo primordial da indagação filosófica -, limitando-se a construir uma obra substancialmente crítica, de feição materialista, toda ela imbricada no questionamento às vezes confuso – mas sempre virulento – do pensamento alheio. Dispensado o tom arrogante das facciosas análises acadêmicas e verificado o grosso da obra, o pensar de Marx depende virtualmente do que ele leu, chupou, perverteu ou adaptou do pensamento dos outros, a começar por Demócrito (460-370 a.C.) e Epicuro (341-270 a.C.), na sua tese ateísta de doutoramento em Jena, em 1841, passando por Hegel (1770-1831) e o próprio Fuerbach, ainda no campo filosófico, além de Rousseau (1712-1778), Saint-Simon (1760-1825), Fourier (1772-1837) e Proudhon (1809-1865), entre os reformistas sociais franceses, até chegar nos economistas clássicos ingleses Adam Smith (1723-1790), Mill (1773-1836) e sobretudo Ricardo (1772-1823), cuja concepção da teoria do valor-trabalho, mais tarde destroçada pelo austríaco Bohm-Bawerk (1851-1914), serviu de modelo para Marx – aqui também escorado no “erro de conta” de Proudhon – extrair sua célebre mais-valia e acirrar os ânimos da luta de classes, idéia, por sua vez, a ser creditada ao falangista Blanqui (1805-1881), francês considerado inventor da barricada e autor da expressão “ditadura do proletariado”.

Embora sempre se manifeste contra o idealismo absoluto, a “chupação” permanente de Marx tem como fonte básica Friedrich Hegel, filósofo especulativo alemão, autor da complexa “Fenomenologia do Espírito” (Nova Cultural, SP, 2000), que definiu, no dizer acadêmico de Merquior (“Marxismo Ocidental”, Nova Fronteira, 1986), “o Absoluto como um Espírito ultra-histórico”, associando a ontologia (teoria do ser) com filosofia da história (reflexão sobre o pensamento histórico), procurando, via intermediação dialética, a unidade entre o finito e o infinito para assim chegar ao eterno como fundamento do transitório – e vice-versa. Hegel – que o filósofo Schopenhauer (1788-1860) considerava “um charlatão ordinário” – enxergava no movimento pendular entre as forças da imediação e da mediação (que classifica de ”negativas” ou de “auto-alienação”) o caminho que conduz ao desenvolvimento do Espírito absoluto, este entendido como realidade única e total. De fato, para Hegel, o espírito absoluto é Deus e o mundo a forma como Ele se materializa ou, apelando para a fórmula teológica: Ele “é o espírito que se tornou visível”. Para demonstrar como a divindade se converte em mundo, Hegel compreende Deus em sua expressão dialética: “O desenvolvimento do espírito”, humano ou divino, diz, é “sair, desenvolver-se negando a si e, ao mesmo tempo, tornar a si mesmo”. “No homem”, continua, “Deus chega à consciência plena de si mesmo e, dialeticamente, à autoconsciência”. Esta autoconsciência, que leva ao autoconhecimento, efetiva-se como o sentido profundo do espírito, manifestado não apenas na existência do indivíduo, mas na própria experiência histórica.

Toda essa complicada e por vezes esotérica argumentação hegeliana, aqui apenas sumariamente esboçada, tem por objetivo identificar no Estado moderno racionalmente organizado a expressão perfeita do Espírito absoluto, o primeiro entendido – estranhamente, quando se percebe que o Estado escraviza – como fundamento da noção da liberdade. Para Hegel, vale insistir, o Estado é o todo perfeito, e o indivíduo, ou cidadão, apenas uma peça dessa totalidade. “Tudo que é real”, diz ele referindo-se ao Estado, “é racional” – e “tudo que é racional é real”, completa, fazendo uso do jogo dialético.

Na sua especulação filosófica, Hegel define assim os elementos que compõem o seu método para explicar o movimento da história: 1) posição ou imediação (tese), 2) oposição ou mediação (antítese) e 3) ultrapassagem ou sublimação (síntese). Para Hegel, uma vez estabelecido o processo dialético como forma de investigação, não será mais possível operar-se com o formalismo das “verdades eternas” da filosofia reflexiva – como a de Fitche (1762-1814), por exemplo. Na dialética hegeliana, a síntese se opera a partir da contradição entre tese e antítese, repetindo-se no processo de contradição até que atinja um novo estágio. Trocado em miúdos, isso significa que a cada etapa do desenvolvimento histórico um povo encarna, pela ação e vontade de suas forças representativas, o momento em que a humanidade avança e a sociedade se desenvolve, a exemplo do que se processou no Egito dos Faraós, na Pólis Grega, no império Romano, nos Reinos da idade média ou na França da Revolução de 1789.
Esse esquema interpretativo leva Marx (que chafurdara Hegel de cabo a rabo em companhia dos irmãos Bruno e Edgar Bauer), substituindo “povos” por “classes”, matar a charada da progressividade da história. Na sua cabeça, se a história é um “processo” irreversível e ascendente, torna-se evidente a superação da burguesia pelo proletariado – do mesmo modo que a burguesia suplantara o feudalismo.

Aqui se faz uma necessária pausa para anotar que tanto Hegel quanto Marx fazem uso da dialética em causa própria. Um e outro, no momento oportuno, congelam a dinâmica ascendente do sistema para fazer pontificar suas pessoais interpretações. Assim, tal como Marx, que congelaria o operariado como classe única entre as classes após o “devir” do banho de sangue revolucionário, Hegel, a despeito do movimento dialético, elegeu o seu próprio sistema filosófico como ponto final do desenvolvimento do pensamento e, o que é pior – conforme deixa entrevisto na “Filosofia da História” (Nova Cultural, SP, 2000) -, projetou na monarquia representativa prussiana o modelo acabado do desenvolvimento político-social – mistifório que abordaremos no próximo artigo.

 

Ipojuca Pontes, cineasta, jornalista, e autor de livros como ‘A Era Lula‘, ‘Cultura e Desenvolvimento‘ e ‘Politicamente Corretíssimos’, é um dos mais antigos colunistas do Mídia Sem Máscara. Também é conferencista e foi secretário Nacional da Cultura.

Arquivo MSM. Publicado em 21 de novembro de 2010.

 

 

 

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