Discussões vãs
De uma vez por todas, debatedores de religião. Se o diletantismo filosófico já é tão deplorável e já trouxe tantos males à humanidade, o teológico é pior ainda.
Nesses assuntos, ou o sujeito empreende estudos sistemáticos, buscando informar-se sobre a evolução das discussões e o status questionis para poder ter alguma segurança objetiva do que diz, ou então o melhor é ficar quieto, guardar suas opiniões para si e evitar o desgaste em polêmicas que não farão bem nem à sua alma nem à dos interlocutores.
Para quem compreende realmente do que se trata, não existe maior blasfêmia do que tratar Deus como um objeto do mundo, cuja existência se pode “provar” ou “negar”.
“No princípio Deus criou o céu e a terra” significa:
1 – A existência pressupõe a possibilidade. Logo, antes (cronologicamente) e acima (ontologicamente) do existente, está a possibilidade infinita ou universal, também chamada de onipossibilidade ou – um tanto inexatamente – onipotência. Teologicamente, “Deus’.
2 – A possibilidade limita a existência, mas não é limitada por ela, não podendo portanto extrair dela as condições da sua manifestação. Logo, a possibilidade se torna existência desde si mesma e não desde algo existente. É por isso que a força de passar à existência sem depender de algo preexistente é descrita teologicamente como “criação” (ex nihilo) e não como mera “transformação”.
3 – A existência considerada “em si” e abstratamente é ainda mera potência de existir, que só passa ao ato através dos existentes, dos seres. O conjunto da existência, uma vez instaurado, divide-se, portanto necessariamente em dois aspectos: (a) os entes existentes; (b) as possibilidades ilimitadas da existência ainda não manifestada. No simbolismo bíblico, a mera potência de existir denomina-se “as águas’, os entes já existentes denominam-se “terra”, as possibilidades em reserva denominam-se “céu”.
Abstraída a linguagem simbólica, não há um só ser humano que não acredite nessas afirmativas (mesmo sem dar-se conta delas), não só porque são auto-evidentes e apodícticas, mas porque sem elas seria impossível pensar sobre a realidade existente, apenas criar no ar formas lógicas vazias. O que há são indivíduos que ou não inteligem claramente esse fundamento da cognição que não obstante continua operando neles inconscientemente, outros que não o reconhecem quando expresso no simbolismo religioso (e portanto rejeitam este último, às vezes em nome de algo que ingenuamente imaginam ser “a razão” ou “a ciência”), outros ainda que não conseguem apreendê-lo senão sob a forma do simbolismo religioso.
Os primeiros denominam-se “agnósticos”, os segundos “ateus”, os terceiros “crentes”. Os crentes dividem-se em fiéis, quando amam e obedecem essa estrutura fundamental da existência, e “gnósticos” quando a odeiam e rejeitam. Ao lado dos fiéis há os “espirituais”, que têm a evidência intelectual do fundamento da existência e a reconhecem no simbolismo religioso, enquanto os fiéis enquanto tais não têm essa evidência, mas a pressentem na força e beleza do simbolismo religioso e se dirigem a ela através da “fé”. Os espirituais devem transformar a mera apreensão teorética em plena assimilação existencial através da fé, cujo exemplo lhes é dado pelos fiéis. Os fiéis, com a ajuda dos espirituais devem passar da “fé” à “contemplação” através da”meditação” do sentido dos símbolos: Intellige ut credas, crede ut intelligas – “Intelige para crer, crê para entenderes”. Isto é religião.
That´s all. Não vejo como discutir isso no campo das “provas objetivas’, porque: (a) toda prova objetiva depende do reconhecimento prévio da estrutura da existência; (b) aquele que nem apreendeu a estrutura da existência nem a pressentiu através da “fé” é obrigado a criar um simulacro de fundamento, o qual, em todos os casos possíveis e imagináveis, será uma premissa empírica e parcial qualquer, que funcionará como limite extremo da sua vontade de saber, para além do qual, no seu entender, nada tem o direito de existir. Dentro desse limite, ele pode encontrar muitas verdades empíricas, e o hiato entre seu pensamento e a estrutura da existência nem chegará a lhe chamar a atenção, pois está para além do seu “mundo” autofabricado. Portanto, quê fazer com ele? Ou vocês lhe mostram a estrutura da existência, que ele não poderá refutar, mas relutará em admitir porque admiti-la implica confessar que até esse momento foi apenas um idiota (do gr. Idios, “o mesmo”, isto é, uma mente fechada num mundinho da sua própria invenção), ou então é melhor deixá-lo em paz até que esse mundinho seja feito em cacos por uma súbita e impremeditada ampliação do seu campo de consciência.
Rascunho de um artigo, agosto de 2004.
Olavo de Carvalho.