Que é um escritor?

Por Olavo de Carvalho

Foto: Mariana Reis, 2020.
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Que é um escritor? É uma inteligência altamente individualizada que não se formou no idioma de nenhuma ciência ou técnica, muito menos na retórica de um grupo social em particular, mas na prática da língua geral cotidiana, apenas elevada ao seu uso mais fino e requintado.

O escritor fala “a língua de todo mundo”, apenas com um domínio técnico que vai além – às vezes imensuravelmente além – das possibilidades do usuário comum.

O domínio que ele tem da língua também não é o do gramático, do filólogo ou do linguista, para os quais ela se constitui, como todo objeto científico, de uma ocasião de passagem da experiência individual concreta às generalidades racionais da ciência.

Exatamente ao contrário, o que ele busca na língua é o uso mais individualizado que possa fazer dela, às vezes tão individualizado – como no caso de James Joyce ou Guimarães Rosa – que ele parece estar falando uma outra língua que não a de uso geral.

Nas crenças do nosso universo escolar e midiático, a linguagem das ciências e técnicas – aí incluída, sabe-se lá por quê, a da própria mídia – expressa as realidades do universo material, enquanto a da literatura apreende apenas o mundo subjetivo das emoções e sentimentos.

Mas isso é o oposto do que a experiência nos mostra. A língua das ciências e técnicas compõe-se de signos associados a significados permanentes e estáveis, sem os quais toda comunicação científica seria impossível. Essa fixidez e estabilidade são o que dão ao usuário a impressão de estar falando da realidade propriamente dita; impressão ilusória que toma a pressão da autoridade social pelo impacto da realidade. Na verdade, a conexão do universo semântico da ciência e das técnicas com o da realidade só poderia ser de identidade caso a ciência tivesse alcançado o domínio total do seu objeto, o que obviamente é apenas um ideal, para não dizer um sonho, que talvez – e muito provavelmente — não será realizado nunca.

A literatura, ao contrário, não tem nenhuma ambição de “expressar a realidade”, mas a de explorar o imenso abismo que se abre entre linguagem e realidade – ou, mais amplamente, entre o conhecer e o ser. Eis por que a literatura pode penetrar em territórios que são inacessíveis à ciência e à técnica.

Se a linguagem científica é um vocabulário estável, ilimitadamente repetível, só utilizável portanto dentro de circunstâncias determinadas e socialmente regulamentadas, a linguagem literária é, ao contrário, a permanente abertura a toda a ilimitada riqueza semântica que nos dá uma idéia aproximada – a única idéia aproximada – do infinito que nos envolve e contém.

É lógico, portanto, que a linguagem literária não exclua a linguagem científica, mas a abranja e inclua como um de seus subcódigos. A linguagem científica, ao contrário, exclui por hipótese a flexibilidade literária, chegando a considerá-la o seu mais letal concorrente e inimigo.

A linguagem literária é, obviamente, aberta; a científica, fechada. Aberta para a infinidade de situações e nuances da experiência real; fechada para uso exclusivo na comunicação entre um grupo determinado de profissionais sobre os objetos costumeiros do seu campo de interesses.

Portanto, é óbvio que uma pessoa bem treinada na linguagem literária se adapta facilmente ao uso de quaisquer linguagens tecnocietíficas, que no fundo não são senão variações parciais da sua própria, concebidas para o emprego em contextos limitados. A recíproca não é verdadeira.

 

Nota publicada no perfil do filósofo no Facebook  hoje, 03/12/21.

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