A China no Walmart
Para saber quanto a intelligentzia brasileira está por fora do que se passa no mundo, basta uma visita ao Walmart em qualquer cidadezinha americana.
Setenta por cento dos produtos aí vendidos são chineses. Os dados são da revista China Business Weekly . “Se o Walmart fosse um país” – escreve Ted C. Fishman no seu recente livro China, Inc ., “seria o quinto maior mercado exportador da China, acima da Alemanha e da Inglaterra”.
E não é só no Walmart: em todos os supermercados populares dos EUA, é difícil encontrar algum móvel ou eletrodoméstico barato, com marca americana, que não seja fabricado na China.
Nenhum cidadão americano ignora o que isso significa: 2.900.000 vagas perdidas nas fábricas e a atrofia das velhas cidades industriais como Detroit, Cleveland, Allentown, Bethlehem e Pittsburgh. Alguns estudiosos de estratégia militar, como Jeffrey Nyquist – um dos homens mais inteligentes da América — vão um pouco além: sabem que os fregueses da rede mais barateira de supermercados da América estão financiando o crescimento da máquina de guerra chinesa, cujo objetivo explícito, já reiterado mil vezes em publicações militares da República Popular da China, é a destruição dos EUA (explicarei mais sobre isto nas próximas semanas). Essa máquina aumenta dia a dia seu estoque de bombas atômicas, num ritmo jamais conhecido pelos EUA e pela URSS durante a Guerra Fria, e investe maciçamente na produção de armas biológicas cujo estoque atual já seria suficiente para infectar toda a população americana em questão de horas. E, quando os estrategistas advertem que o gasto americano com produtos chineses fomenta o crescimento de um inimigo potencial, eles não se referem apenas ao ganho implícito que as forças armadas de qualquer país têm quando a economia nacional cresce. O Exército é o principal capitalista da China: ele lucra diretamente com a venda de cada TV, tocador de CD ou telefone celular que as fábricas chinesas vendem no exterior. E ganha em dobro, pois ao lucro se soma a verba que o governo chinês recolhe em impostos e repassa às forças armadas. Em dobro, não: em triplo, porque, quanto mais os produtos chineses fazem sucesso nos EUA, mais investimentos americanos vão para as empresas chinesas, isto é, para o Exército chinês.
É sobretudo graças à ajuda americana que a China cresce num ritmo capaz de fazer dela em 2012 a maior potência industrial e em 2050 a maior economia do mundo.
Nada disso, é claro, resulta em benefício considerável para o povo chinês. Em volta de cinco cidades que prosperam em ritmo alucinante, estende-se um continente de misérias que o público ocidental mal pode imaginar. O salário de um trabalhador na China é cinco vezes menor que no México. E não pensem que os serviços públicos – a desculpa máxima do socialismo — equilibrem a baixa remuneração. Os hospitais chineses, todos do governo, não fazem um parto, não engessam um braço, não arrancam um dente sem enviar a conta no fim do mês. A rede de água e esgotos é péssima em todo o interior, e a dificuldade de sobrevivência para as famílias camponesas é tanta que o governo se torna cúmplice delas na chamada “guerra contra as meninas”: o hábito de jogar as recém-nascidas aos porcos (e depois comer os porcos, é claro). A prosperidade chinesa não se assenta só na cegueira americana, é claro, mas na polícia política onipresente, no trabalho escravo, na esterilização forçada de milhões de mulheres e na perseguição maciça das minorias, especialmente religiosas (o número de cristãos assassinados pelo governo chega a vinte mil por ano). À violência e à crueldade de um Estado policial soma-se a sem-vergonhice institucionalizada: dos lucros da indústria chinesa, 50 bilhões de dólares anuais são em produtos falsificados.
Também não caiam na esparrela de imaginar que toda essa quantidade monumental de sofrimento humano tenha servido ao menos para preservar uma cultura milenar. A “Revolução Cultural” de Mao Tsé-tung devastou a cultura tradicional da China mais do que poderia tê-lo feito uma ocupação estrangeira. E o que sobrou foi totalmente deformado pelas reinterpretações oficiais que, incrivelmente, trataram de dar um sentido materialista aos clássicos da espiritualidade chinesa. Hoje, nas universidades de Pequim, é impossível encontrar um estudioso que compreenda o sentido do taoísmo ou o simbolismo do I-Ching. Se estudiosos ocidentais como René Guénon e Marcel Granet não tivessem preservado esses conhecimentos, o tesouro espiritual chinês estaria irremediavelmente perdido para a humanidade.
Ciência e tecnologia também não ganham nada com o investimento americano na China. A maior parte dos conhecimentos chineses nessa área é simplesmente comprada em Nova York ou na Flórida e copiada com a maior cara-de-pau. O que não se pode comprar em loja obtém-se por espionagem – às vezes sob a proteção do próprio governo americano, como aconteceu no caso do laboratório nuclear de Los Alamos, onde o presidente Clinton em pessoa mandou bloquear as investigações (nada mais lógico, aliás, uma vez que empresas estatais chinesas tinham contribuído substantivamente para a sua campanha eleitoral).
Como foi possível que tanto dinheiro americano fluísse para alimentar essa monstruosidade?
O nome do culpado é “globalização”. E é olhando as coisas desse ponto de vista que se percebe a total alienação da mídia brasileira e principalmente dos intelectuais iluminados que a freqüentam com suas lições de sabedoria. “Globalização”, para essa gente, é sinônimo de Império Americano. Nos nossos debates públicos, o triunfo da doutrina do livre mercado na década de 90 é apresentado invariavelmente como um artifício maquiavélico inventado por estrategistas de Wall Street para implantar no mundo o American Way of Life. Alguns desses estrategistas, de fato, alegavam que a abertura das fronteiras comerciais espalharia a democracia americana no mundo. Mas outros alertavam que a simples liberdade econômica não poderia operar essa mágica, sobretudo se adotada no ar, em abstrato, fora de um enfoque geopolítico que levasse em conta, para além da concorrência empresarial, a concorrência estratégica entre os Estados. A abertura econômica da China, diziam, era perfeitamente compatível com a continuidade da ditadura comunista e de uma política exterior agressiva, militarista e expansionista. Este lado do debate americano foi inteiramente ignorado pela nossa mídia: raciocinando exclusivamente na base do estereótipo Estado versus mercado, que se tornou o fetiche máximo do pensamento esquerdista nacional, ela identificou a priori o dogma do livre mercado com o interesse nacional americano, vendo uma convergência justamente onde os melhores analistas americanos viam uma contradição. A relação entre liberdade de mercado e interesse nacional é ambígua, para dizer o mínimo, e se torna altamente problemática quando não há reciprocidade suficiente na abertura dos mercados de parte a parte, isto é, quando um dos Estados aposta tudo na liberdade econômica e o outro no crescimento do poder nacional, usando como arma a abertura oferecida pelo outro. A abertura econômica é fórmula boa para as relações entre povos comerciantes. Mas, entre o comerciante e o guerreiro, a vantagem a favor deste último é esmagadora. No romance de Flaubert, Salammbo , dois mercenários conversam sobre o que planejam fazer quando a guerra entre Roma e Cartago acabar. Um deles sonha comprar uma fazenda e um arado, para enriquecer no comércio de alimentos. O outro responde que não precisa de nada disso para enriquecer. Mostrando a espada, diz: “Este é o meu arado.” Tal é a diferença entre americanos e chineses: os primeiros apostam no sucesso de um sistema econômico; os segundos usam esse sucesso como meio provisório para crescer e vencer no campo das armas. Os americanos querem apenas dinheiro, e se iludem pensando que os chineses querem o mesmo. Os chineses alimentam essa ilusão, apostando que ela os ajudará a obter o que querem: o dinheiro e tudo o mais – a completa destruição cultural, política, militar e econômica do inimigo. No começo, as apologias abstratas do livre mercado tendiam a encobrir essa diferença. Hoje ela é patente aos olhos de todos, e é nela, exclusivamente nela, que reside a causa do crescimento inusitado da China, paralelamente ao enfraquecimento da indústria americana.
As relações entre ideologia e poder são obviamente mais complexas do que as concebe a vã filosofia das classes falantes brasileiras. O que um observador atento aprende no Walmart é que a doutrina do capitalismo liberal pode ajudar a liquidar o capitalismo liberal, fomentando o crescimento de uma ditadura comunista tão agressiva, pelo menos, quanto a antiga URSS.
Êta China que dá trabalho.