A origem do Covid-19 e a responsabilidade da China

Por Luiz Hertel Santiago

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Foto: A virologista chinesa Shi Zhengli, a “bat-woman”, cientista envolvida nas pesquisas de “ganho de função” do coronavírus e morcegos. (Johannes Eisele/AFP/Getty Images)

 

Após um ano sendo tratada como uma teoria da conspiração pela maioria da mídia, grandes redes sociais, e parte da comunidade científica, a teoria de que o coronavírus vazou de um laboratório chinês está conquistando espaço para ser discutida seriamente. Esse debate traz consequências sobre o modo como devemos avaliar a responsabilidade internacional do Partido Comunista Chinês sobre a pandemia.

Ainda em março, a Organização Mundial da Saúde apresentou o relatório de um time de investigação sobre a origem animal do coronavírus. As investigações concluíram que o cenário no qual o vírus teria vindo de um incidente de laboratório era extremamente improvável. No entanto, há relatos de que os membros do time não tiveram acesso a dados não tratados, bem como a registros originais do laboratório.

No mesmo dia em que o relatório foi publicado no site da OMS, seu diretor-geral , doutor Tedros Adhanom, pediu por uma nova investigação e afirmou que “todas as hipóteses ainda estavam na mesa”.

Em entrevista para o Council on Foreign Relations, Nicholas Wade afirmou que, apesar da conclusão da investigação inicial, ela acabaria sendo um dos fatores para que a teoria do vazamento de laboratório fosse considerada com mais cuidado. Isso porque os chineses não puderam apresentar evidências substanciais da origem animal do vírus. O que seria de se estranhar, já que deveria haver abundância de evidências deixadas pela passagem natural do vírus, após cerca de 14 meses desde o surto inicial.

A teoria do vazamento de laboratório também ganhou força após reportagens terem divulgado, em maio, informações de um relatório de inteligência do governo dos Estados Unidos. De acordo com o relatório, ainda em novembro de 2019, três pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan teriam ficado doentes e procurado assistência médica. Isso contrasta com o primeiro comunicado dirigido à OMS, em 31 de dezembro, pela Comissão Municipal de Saúde de Wuhan. O relatório da Comissão informava a OMS sobre um conjunto de casos de pneumonia que estavam acontecendo em Wuhan.

A repercussão do relatório de inteligência americano seguiu em diversos jornais, mas não se restringiu apenas aos veículos de notícia. O Facebook voltou a permitir que posts envolvendo a teoria da origem em laboratório fossem feitos. E, em 26 de maio, a Casa Branca emitiu um comunicado no qual o presidente Joe Biden afirmou que a comunidade de inteligência dos Estados Unidos está dividida entre duas hipóteses principais.

A primeira sustenta que o vírus tenha vindo do contato de um animal infectado com um humano. A segunda supõe que o vírus tenha vindo de um vazamento acidental de um laboratório. O presidente americano informou que pediu um novo relatório, incluindo questões específicas para a China, dentro do prazo de 90 dias para avaliar a origem do coronavírus.

No entanto, o presidente Biden foi além e sinalizou sua intenção de trabalhar com parceiros ao redor do mundo para pressionar a China para conseguir que ela participe de uma investigação internacional transparente, baseada em evidências e que ela disponibilize acesso a todos os dados e evidências relevantes.

Outra declaração que demonstra as dimensões que essa mudança de postura sobre a teoria do vazamento de laboratório tomou está em um comunicado produzido pelo G7 (grupo com alguns dos países mais ricos e influentes do mundo). No documento, o grupo pede por um estudo transparente, convocado pela Organização Mundial da Saúde, a respeito das origens do COVID-19, inclusive na China.

O problema da censura do debate
O debate sobre a origem do COVID-19 sofreu por conta da censura, e não estamos falando apenas de atos do Partido Comunista Chinês. Grandes redes sociais como o Twitter e o Facebook passaram a censurar postagens relacionadas a teoria do vazamento de laboratório. Atualmente, o Facebook voltou a permitir postagens envolvendo o tema. Mas isso nos mostra como é problemática a política de checagem de fatos e como ela pode afetar o debate público.

Provavelmente como uma reação extremada ante as declarações do ex-presidente Donald Trump, muitos jornalistas e cientistas começaram a taxar qualquer consideração sobre a origem em laboratório do COVID-19 como teoria da conspiração ou fake news. Uma postura nada científica para os defensores da ciência. A jornalista Katherine Eban aponta uma declaração que ficou famosa e deu o tom de como a teoria seria tratada por muitos cientistas e jornalistas. A declaração foi dada na revista médica The Lancet e trouxe passagens como “nós permanecemos juntos para condenar fortemente teorias da conspiração sugerindo que o COVID-19 não tenha uma origem natural”.

Comentando o comportamento da comunidade científica, o repórter científico Nicholas Wade lembra que os virologistas têm interesses em jogo neste debate. Uma vez que, caso a teoria do vazamento do vírus seja comprovada, haverá grande escrutínio sobre o que os virologistas estão fazendo e sobre os experimentos de ganho de função em vírus. E tal escrutínio é algo que nenhum grupo de profissionais gostaria de atrair para si. Wade conclui que os virologistas não deveriam ser os únicos juízes no assunto.

As evidências em favor do vazamento de laboratório
A despeito da censura e do viés que permearam a discussão, existem evidências que fortalecem a teoria do vazamento do laboratório. Wade acredita que um dos pontos que fortalecem essa teoria é o fato de que a investigação feita pela OMS no início do ano não conseguiu encontrar evidências sobre a origem animal do vírus.

Embora outras epidemias parecidas tenham começado por origem animal, não há evidência de que o SARS 2 (vírus que causa o COVID-19) tenha surgido da mesma forma. Seria necessária uma grande mudança evolutiva para que um vírus que ataca morcegos

passasse a atacar humanos. Tal processo evolucionário pode ser detectado. Porém, no caso do SARS 2, isso não foi possível. O vírus já surge bem adaptado para o ataque a células humanas. E não seria surpresa, caso o vírus tenha surgido de experimentos. Os experimentos com manipulação de vírus não são novidade, eles podem servir como um meio de se antecipar a futuras doenças que venham a surgir de animais, de modo a melhor se preparar para uma possível epidemia.

A principal evidência de que o SARS-COVID 2 foi manipulado, aponta Wade, foi a detecção de um componente anatômico do vírus, o local de clivagem da furina. O qual é uma característica importante para que o vírus seja um patógeno humano poderoso. Acontece que a família a qual pertence o novo coronavírus não apresenta essa característica. Por isso seria difícil encontrar uma explicação para que ele a tenha obtido através de recombinação natural com outros vírus de sua família.

A segunda evidência mais forte é com base nos códons apresentados pelo vírus. Wade segue dizendo que os coronavírus têm uma sequência de códons preferidos para a especificação do aminoácido arginina, já os humanos têm outra sequência de códons preferida para especificar o aminoácido. Porém, o novo coronavírus prefere justamente a mesma sequência de códons que os humanos. Caso o vírus tenha surgido na natureza, seria de se esperar que ele seguisse a preferência de códons similar a dos outros vírus de sua família. A situação fica ainda mais curiosa, porque o novo coronavírus apresenta duas dessas sequências (preferidas pelos humanos) muito próximas uma da outra. Segundo Wade “… (essa sequência) não ocorre na família dos beta coronavírus (família do novo coronavírus), ela simplesmente não existe”.

Responsabilização legal da China
Caso a teoria do vazamento de laboratório seja confirmada, só irão aumentar os motivos para que a China seja responsabilizada pelo alastramento mundial do COVID-19. O professor de direito marítimo internacional, James Kraska, defendeu que os países afetados pelo vírus podem buscar a responsabilização legal da China por danos econômicos.

Kraska argumenta que desde os primeiros indícios do surto, em dezembro de 2019, o governo chinês adotou uma postura de amenizar a gravidade da doença e seus perigos, ao mesmo tempo em que perseguiu seus cidadãos que alertavam para um quadro preocupante de contágio. Em relatório dirigido à OMS, a Comissão Municipal de Saúde de Wuhan declarou que o vírus não era transmissível de humanos para humanos. A postura de amenizar a gravidade da doença seguiu com a continuidade normal das programações do ano novo lunar que ocorreu no final de janeiro de 2020.

Para o autor, a responsabilização legal da China é possível, porque ela está submetida ao Regulamento Sanitário Internacional de 2005, do qual ela é signatária. A China teria falhado em cumprir o art. 6 que determina que os estados devem prestar informações precisas, em tempo, e detalhadas sobre potenciais emergências de saúde pública para prevenir pandemias. Bem como com o art.10, o qual trata do envio rápido e transparente para a OMS, dentro de 24 horas, de informações pedidas pela organização, além da participação em avaliações colaborativas sobre os riscos envolvidos.

O autor lembra que a China não apenas negou investigações colaborativas, em janeiro de 2020, sem dar explicações, mas também não providenciou os dados detalhados que os oficiais da OMS precisavam.

A base legal para a responsabilização da China estaria no documento Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts feito pela Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas. O documento define wrongful act como uma ação feita por um Estado e que viola uma obrigação internacional. E nos exemplos anteriores teríamos algumas ocasiões em que a China violou as obrigações internacionais que ela tinha frente a OMS. Não apenas violou essas obrigações, como também trouxe consequências desastrosas para o resto do mundo.

No caso em que um estado seja responsável por um wrongful act internacional, ele terá que fazer uma reparação total dos danos causados aos outros estados afetados. A reparação incide tanto sobre danos morais como materiais e pode ocorrer na forma de: restituição, compensação, satisfação e garantias contra futuras repetições. Kraska cita um estudo que aponta que o impacto do vírus poderia ter sido reduzido em até 95%, se a resposta dada pela China tivesse sido dada com 3 semanas de antecedência.

O autor reconhece que dificilmente a China iria colaborar com os procedimentos de reparação e participar de uma disputa na Corte Internacional de Justiça. Para ele, a soluçãoada pela própria lei de responsabilidade dos Estados. Ela assegura aos Estados prejudicados que a capacidade de lançar mão de contramedidas legais através da suspensão da observação de obrigações para com o Estado que inflingiu o dano.

Tal suspensão deve ser balizada por alguns princípios como a proporcionalidade,e o respeito aos direitos humanos. De maneira que o país ofendido teria uma vasta gama de contramedidas para pressionar o país que perpetrou o dano a cumprir suas responsabilidades e admitir o dano que causou.

Resta aos agentes internacionais que considerem as possibilidades de responsabilização legal da China pelo modo como ela deixou de cumprir as obrigações constantes no Regulamento Sanitário Internacional de 2005. Caso a teoria do vazamento de laboratório se confirme, os motivos para se responsabilizar legalmente a China irão aumentar, e será ainda mais difícil defender que não se faça nada sobre essa prestação de contas.

Fontes:

https://www.who.int/publications/i/item/who-convened-global-study-of-origins-of-sars-cov-2-china-part
https://www.wsj.com/articles/intelligence-on-sick-staff-at-wuhan-lab-fuels-debate-on-covid-19 -origin-11621796228?mod=djemalertNEWS
https://www.who.int/news/item/30-03-2021-who-calls-for-further-studies-data-on-origin-of-sar s-cov-2-virus-reiterates-that-all-hypotheses-remain-open
https://www.cfr.org/podcasts/lab-leak-theory-covid-19s-origins-nicholas-wade
https://www.wsj.com/articles/intelligence-on-sick-staff-at-wuhan-lab-fuels-debate-on-covid-19 -origin-11621796228?mod=djemalertNEWS
https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/05/26/statement-by-pre sident-joe-biden-on-the-investigation-into-the-origins-of-covid-19/
https://www.g7uk.org/wp-content/uploads/2021/06/Carbis-Bay-G7-Summit-Communique-PD F-430KB-25-pages-1-2.pdf
https://thehill.com/changing-america/well-being/prevention-cures/516754-twitter-suspends-a ccount-of-chinese-virologist
https://www.politico.com/news/2021/05/26/facebook-ban-covid-man-made-491053
https://www.vanityfair.com/news/2021/06/the-lab-leak-theory-inside-the-fight-to-uncover-covi d-19s-origins
https://warontherocks.com/2020/03/china-is-legally-responsible-for-covid-19-damage-and-cl aims-could-be-in-the-trillions/

 

Luiz Hertel Santiago é coordenador-geral do Insituto Monte Castelo.

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