Fé e desespero em ‘No Coração da Escuridão’, de Paul Schrader

Por Thiago Cortês

1

Assisti “First Reformed” (“No coração da escuridão”) em uma madrugada de insônia. Queria relaxar um pouco, mas o que recebi foi um belo soco no estômago.

Franz Kafka dizia que um bom livro deve ser como um machado “que quebra o mar gelado em nós”. Uma experiência visceral, única e que deixa marcas profundas em nossa alma.

Pois “First Reformed” é a realização cinematográfica deste preceito kafkaniano: é uma machadada estética, filosófica e, acima de tudo, espiritual.

Disponível na Netflix, o filme é dirigido por Paul Schrader, roteirista do clássico “Taxi Driver”. Há aqui também os vestígios de violência, niilismo, fé e redenção.

Ethan Hawke interpreta o reverendo Ernst Toller, que pastoreia a Primeira Igreja Reformada de Snowbridge, em Nova Iorque. Não é um reverendo comum. E não é uma igreja comum: tem 200 de anos de fundação, quase tão antiga quanto a formação dos EUA como nação.

Ex-capelão militar, o reverendo Toller é um homem atormentado. Ele incentivou o filho a se alistar no Exército, seguindo a tradição da família, e o jovem morre no Iraque, naquela guerra sem sentido. Toller é abandonado pela mulher e se refugia na Bíblia. E na bebida.

Ele decide escrever um diário para registrar seus pensamentos sombrios e suas dúvidas — muitas delas parecem inapropriadas para quem cuida de uma comunidade de almas.

Certo dia Toller recebe o pedido de aconselhamento espiritual de uma jovem casada com um ativista ecológico que está flertando com o niilismo.

Não por acaso, a jovem se chama Maria e está grávida.

Mas Michael, o marido desolado com o egoísmo e a destruição à sua volta, quer impedir que Maria traga uma criança para um “mundo sem esperança”.

Ironia. Cabe ao reverendo Toller, ferido pela perda trágica do filho, tentar oferecer alguma esperança e consolo ao casal. E, em especial, salvar a vida do bebê inocente.

Com a fé que lhe resta e a sabedoria de quem conhece o abismo de perto, o reverendo enfrenta a lógica daquele ativista que tem todos os dados que comprovam o declínio do mundo, e (supostamente) sancionam sua intenção de matar o próprio filho.

“É verdade, Michael. Talvez seja uma dor trazer uma criança para este mundo, mas eu te garanto que nada se compara à dor de tirar uma criança dele”, diz o reverendo.

A vida que cresce dentro de Maria simboliza a esperança que teima em surgir mesmo no ambiente claustrofóbico, angustiante e hostil à felicidade que vemos no filme.

Mas nada é o que parece. Nem o casal, nem a igreja e nem seus líderes religiosos. Aos poucos percebemos que aquele ativista “maluco” talvez tenha sua parcela de razão.

Muitas descobertas chocantes permeiam o filme. Se há algo que permanece verdadeiro é apenas e tão somente a fé do reverendo. A fé de quem habita o abismo.

“A sabedoria acolhe duas verdades contraditórias em nossa mente. Esperança e desespero. Uma vida sem desespero é uma vida sem esperança”, lembra o reverendo.

O pastor é quem nos guia pelo labirinto — ou seria deserto? — de angústias e pensamentos que compõem o duelo entre fé e angústia o sobre o qual trata este filme.

“O desespero é fruto do nosso orgulho. Um orgulho tão grande que prefere ficar com a certeza (da ruína), ao invés de admitir que Deus é mais criativo que todos nós”, diz o reverendo Ernest Toller, um homem ferido que anseia muito acreditar nas próprias palavras.

Paul Schrader ilustrou essa luta entre esperança e desespero trazendo para seu filme uma estética singular, que presta homenagem ao Barroco: um contraste sem fim entre luzes (suaves) e sombras em enquadramentos quase claustrofóbicos.

É o contraste entre o corpo e o espírito, a fé e a razão, Deus e o homem.

Há um pouco de existencialismo no ar. E o diretor homenageia o monge católico Thomas Merton, cujos escritos foram influenciados por Albert Camus e Kierkegaard.

(Sim, eu estou ciente de que Merton foi um católico progressista. Mas podemos focar em coisas menos paroquiais do que a política, não é mesmo?)

Não há como definir se o fim do filme é um clímax. Mas certamente não é nada convencional. Nem poderia ser com um personagem desses.Toller fala com a coragem de quem enfrentou a noite escura da alma, e convive com as sombras do vazio todos os dias.

“A sabedoria acolhe duas verdades contraditórias em nossa mente. Esperança e desespero. Uma vida sem desespero é uma vida sem esperança”, prega.

O final da jornada do reverendo é chocante. Não há nada no filme que possa preparar o espectador para a última parte desta obra-prima.

É como estar sentando no banco de uma igreja, em um domingo qualquer, ouvindo um sermão sobre a fé como um antídoto para o desespero.

E, de repente, o teto desaba. Tudo fica escuro. E não se ouve mais o mundo lá fora. Sobram apenas escombros.

Mas o sermão continua.

 

Thiago Cortês é sociólogo e jornalista.

 

*

A mídia independente é importante demais para não ser atacada pelas grandes redes de comunicação servas do establishment. Foi denunciando a aliança criminosa entre a grande imprensa e as elites políticas , bem como promovendo uma mudança cultural de larga escala, que o jornalismo independente afirmou sua importância no Brasil.
Mídia Sem Máscara, fundado por Olavo de Carvalho em 2002, foi o veículo pioneiro nesse enfrentamento, e nosso trabalho está só começando.
Contribua, pois é estratégico que nosso conteúdo seja sempre gratuito: https://apoia.se/midiasemmascara
*
1 comentário
  1. Humberto Diz

    Produto um pouco mais elaborado de propaganda do ecologismo. O autor, segundo ele mesmo, é sociólogo. Costumo dizer que formação universitária é deformação. Este artigo confirma.

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado.