Os Robespierres da Saúde Pública
Por Aldo Maria Valli
Trecho do livro Vírus e Leviatã.
Proponho ao leitor um pequeno teste. Qual era o nome do órgão de governo estabelecido pelos revolucionários franceses no 17º germinal do ano I (isto é, 6 de abril de 1793)? Isso mesmo, adivinhaste: Comitê de Saúde Pública. E quais eram seus poderes? Sim, certo: devia fazer supervisão, e era autorizado a tomar decisões por decreto em circunstâncias consideradas de especial urgência e necessidade. Isso te lembra de alguma coisa?
Nihil sub sole novum!
Como a revolução sempre devora seus filhos, poderíamos dizer que, afinal, se trata apenas de esperar, que o Robespierre de plantão acaba guilhotinado. Mas, em nosso caso, não é tão fácil estabelecer quem são exatamente os novos Robespierres. Eles, agora, não têm como alvo uma única nação e um só povo, mas o mundo inteiro.
Em seu Estado e Revolução, Lênin, citando Marx, escreve que “o primeiro decreto da Comuna foi a supressão do exército permanente e sua substituição pelo povo armado”. Trata-se, com efeito, de uma medida tipicamente revolucionária: se o objetivo é impor a ideologia, é necessário que cada cidadão se sinta e seja um soldado, empenhado neste sentido.
A declaração de Lênin veio à minha mente quando vi, no caso da pandemia, como fomos induzidos a nos transformar todos não apenas em pacientes, mas também em soldados em armas, mobilizados não só contra o vírus, o “monstro assassino” a ser combatido em uma luta sem lugar definido, mas inclusive contra aqueles que, relutantes em se identificar com a narrativa dominante, pediam para ir devagar com a supressão e limitação das liberdades fundamentais. Porque a liberdade é coisa fácil de se perder, mas difícil de se recuperar, e porque tal precedente (menos liberdade devido a uma proclamada “emergência”) pode ser bastante perigoso.
Descobri como é difícil abordar o assunto, mesmo com as pessoas mais próximas e abertas à discussão. O risco de perder a liberdade, ou pelo menos porções significativas de liberdade, parecia algo um tanto remoto e teorético em comparação com o perigo, sentido como mais próximo e concreto, constituído pelo vírus assassino. Então, quando eu tentava pôr num prato da balança a saúde e no outro a liberdade, fui visto, na melhor das hipóteses, como um idealista ligeiramente atordoado, incapaz de enfrentar a realidade, e, na pior, como um sabotador.
Toda revolução, como toda guerra, precisa de heróis, e nós os tínhamos. Lembro-me dos artigos e das entrevistas com médicos e enfermeiros: a retórica usada naquelas circunstâncias, especialmente no noticiário, tinha pouco a invejar à propaganda revolucionária. Claro que não tenho nada contra heróis, muito menos contra nossos médicos e enfermeiros: estou falando sobre os meios utilizados pelos veículos de informação do Estado.
Nos consideramos uma sociedade caracterizada por uma cultura desencantada, mas durante a crise do coronavírus mostramos ser capazes de nos tornarmos, de um dia para o outro, uma tropa disposta a marchar sob as bandeiras preparadas para nós pelo governo. “Saúde”, “Segurança”, “Colaboração”, “Responsabilidade”: estas são as palavras-chave. Era como se fôssemos diariamente convocados a participar da procissão de lutadores revolucionários pelo direito à saúde.
Publicado no site da Editoria Danúbio.
Aldo Maria Valli, jornalista italiano, é graduado em Ciências Políticas pela Università Cattolica del Sacro Cuore, de Milão. Trabalhou em diversos veículos, como a revista Ares, o jornal Avvenire e a emissora de tevê RAI. Desde 1996 atua como vaticanista no telejornal TG3, em Roma. Acompanhou o papa João Paulo II em mais de 40 viagens internacionais. Escreveu diversos livros sobre política, religião e jornalismo e mantém o blog Duc in altum.
Faça o download gratuito do 1º capítulo do livro “Vírus e Leviatã” clicando aqui.
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Livro excelente, merece ampla divulgação.
Gostei mas, o nome era Comité de salut public – Comitê de Salvação Pùblica. De qualquer maneira, muito bem lembrado!