A fúria anti-religiosa das elites neognósticas
Por Orlando Braga. Publicado em 17 de agosto de 2012. Arquivo MSM.
“A religião não só é a condição da liberdade eficaz do pensamento, como é a condição da função hígida do pensamento”.
Fernando Pessoa
Chamo a vossa atenção para um ensaio de Thomas Bertonneau (parte I, e parte II) que se centra em T.S. Eliot e na cultura, neste caso, na cultura ocidental. Aconselho veementemente a sua leitura.
A tese principal do ensaio é a de que não é possível uma cultura sem religião. Aqui, “cultura” é entendida como cultura antropológica, e não como cultura intelectual em sentido estrito. Portanto, e melhor dizendo, não é possível a formação de uma cultura antropológica sem uma religião. Podemos discutir se essa religião é A ou B, se deve ser esta ou aquela, mas devemos aceitar como racional a proposição segundo a qual não é possível a formação de uma cultura antropológica — e a sua manutenção como instrumento de coesão social — sem uma religião.
Montesquieu estava certo quando afirmou que “se Deus não existisse, teria que ser inventado”. E o problema da nossa sociedade moderna é o de que os deuses que se inventaram para substituir o Deus da religião cristã, são deuses humanos — e por isso coloca-se o problema das autoridades de direito e de fato, não só na ética mas também na fundamentação das normas do Direito. Quando os seres humanos pretendem fundamentar a ética sem Deus, criam para si mesmos um problema enorme e irresolúvel, como podemos verificar na eterna polêmica, sem fim à vista, entre os dois tipos de ceticismo da modernidade: o ceticismo de Hume (externalista) e o de Kant (internalista).
A tese de Eric Voegelin do ataque dos gnósticos modernos – leia-se: gnósticos modernos, elites modernas, ou a chamada “ruling class”- à cultura antropológica europeia e ocidental, tem como fundamento a ação propositada e deliberada de destruição, por parte das elites modernas e contemporâneas, da espiritualidade humana presente na cultura antropológica, a qual advém da própria religião que contribuiu decisivamente para a formação dessa mesma cultura antropológica.
As elites gnósticas modernas justificam o seu ataque feroz e destrutivo à cultura antropológica e, portanto, à religião cristã, mediante o conceito de “igualitarismo”. Mas este argumento é contraditório em si mesmo, porque a noção de “elite” é, por sua própria natureza, não-igualitarista. Segue-se que o argumento do igualitarismo é apenas e só um pretexto de que a elite se serve para prosseguir uma agenda política de destruição da espiritualidade e da religião que cimentam a cultura antropológica do ocidente.
Tal como aconteceu com os gnósticos da antiguidade tardia, o objetivo dos gnósticos modernos é o de fraturar a sociedade em duas categorias de pessoas: os novos “pneumáticos” — os que, alegadamente, detém o conhecimento e o saber, e por isso, destinados à “salvação” — e os novos hílicos, que constituem a maioria e também a “escória da sociedade” — são os que precisam ser guiados, como se de animais irracionais se tratassem, porque se presume não têm salvação possível. Este maniqueísmo gnóstico é “desmontado” por T. S. Eliot no ensaio de Thomas Bertonneau, quando se coloca em causa a autoridade do saber e o conhecimento dos gnósticos modernos, e na medida em que a especialização acadêmica não é sinônimo de saber e de conhecimento absolutos: a especialização é apenas e só um saber parcial.
A sub-ideologia igualitarista, que faz parte do politicamente correto do nosso espírito do tempo, nada mais é do que a tentativa de formatar a sociedade gnóstica que não vingou na antiguidade tardia por ação contrária do Cristianismo — sublinhando uma clivagem social e cultural abrupta entre as “bestas” [o povo], por um lado, e os “tios”, sendo que estes últimos fazem parte da ruling class. A actual ruling class não é uma aristocracia propriamente dita, tal como existiu no Ancien Regime, porque embora a aristocracia seja composta por indivíduos, qualquer indivíduo da aristocracia do Ancien Regime estava intimamente ligado ao povo mediante a cultura antropológica que é comum e transversal à sociedade inteira — o que não acontece hoje com as elites: pelo contrário, as elites modernas revoltaram-se contra o povo, em nome de um paternalismo em relação ao povo.
É dentro deste espírito de segmentação das sociedades ocidentais entre os “tios” gnósticos e minoritários, por um lado, e as “bestas” maioritárias, por outro lado (sendo que os primeiros se opõem deliberadamente aos segundos quando pretendem a destruição da cultura antropológica) que assistimos à sinificação das sociedades ocidentais; e esta tentativa de sinificação das sociedades ocidentais encontra eco num compromisso tático entra a plutocracia globalista, por uma lado, e a esquerda radical e gnóstica por excelência, por outro lado.
“O princípio do regime totalitário é a fé dos militantes e o medo dos dissidentes” (Raymond Aron em ‘Democracia e Totalitarismo’, 1965).
Para além do argumento do igualitarismo, os gnósticos modernos, aka, elites modernas, utilizam um outro argumento: o argumento dos “direitos humanos” que, alegadamente, justificam hoje o ideário da absoluta autonomia do indivíduo.
O francês Marcel Gauchet — que de conservador tem quase nada, e portanto, é insuspeito — chamou à atenção para esta estratégia dos gnósticos modernos no seu livro “Os Direitos Humanos Não São Uma Política” (1983). Nas chamadas democracias liberais ocidentais, as elites gnósticas modernas e coevas [ruling class] servem-se da bandeira dos Direitos do Homem para irem aumentando paulatinamente a organização burocrática da sociedade por intermédio do combate às tradições e à religião; e essa organização burocrática em crescimento é tutelada por essas mesmas elites neognósticas. Este incremento da burocracia nas democracias liberais (por exemplo, na imposição da burocracia da União Europeia a todas as democracias da Europa) conduz a um anonimato generalizado (atomização da sociedade), em que o conhecimento social de todas as espécies possíveis e imagináveis de direitos e liberdades (por exemplo, no Bloco de Esquerda) têm como contraponto o retraimento narcísico do indivíduo, e o seu desinteresse pela coisa pública.
E a onipresente encenação da liberalização dos costumes (por exemplo, “casamento” gay, adoção de crianças por pares de homossexuais, eutanásia, divórcio unilateral e na hora, aborto a pedido e discricionário, tolerância legal em relação ao infanticídio, políticas dirigidas contra a família natural, etc.), defendida pela elite neognóstica contra a cultura antropológica que inclui naturalmente a religião, encobre a propensão para um mimetismo, um seguidismo e um conformismo sem precedentes, e que constituem, em si mesmos, um rastilho para a explosão de um novo tipo e, por isso, inédito, de totalitarismo.
Chegamos a um ponto em que vamos ter que reaprender a cultura antropológica e a História que as elites modernas e gnósticas tudo fizeram para destruir. E a religião, principalmente a religião católica, tem um papel histórico e único a desempenhar neste caminho necessário de reaprendizagem da cultura antropológica e da herança histórica, sem as quais entraremos inexoravelmente em uma nova era totalitária.
Adendo:saiu uma terceira parte do ensaio de Thomas Bertonneau.
Publicado originalmente com o título Se não pararmos para pensar, vamos ter que aprender tudo de novo.
Orlando Braga edita o blog Perspectivas – http://espectivas.wordpress.com